Cultura

Leia inédito da vencedora do Nobel de Literatura Olga Tokarczuk

O GLOBO antecipa trecho do romance da polonesa, que será lançado em novembro no Brasil
A escritora Olga Tokarczuk em 2017 Foto: BRITTA PEDERSEN / AFP
A escritora Olga Tokarczuk em 2017 Foto: BRITTA PEDERSEN / AFP

RIO — Vencedora do Nobel 2018, anunciado na manhã desta quinta, 10 , a polonesa Olga Tokarczuk, de 57 anos, terá um novo romance lançado no Brasil em novembro, pela editora Todavia. Com tradução de Olga Bagińska-Shinzato, "Sobre os ossos dos mortos" é uma mistura de thriller psicológico com literatura fantástica, que reflete sobre a relação entre humanos e animais.

Olga é psicóloga de formação, mas se consagrou como ensaísta, poeta e romancista. Em 2014, ela também teve seu livro "Os vagantes" publicado pela Tinta Negra. Hoje esgotado, ele ganhará nova edição, também pela Todavia, com novo título ("Viagens") e tradução (de Olga Bagińska-Shinzato). Ainda não há data de lançamento. Em 2018, com o nome de "Flights", o livro venceu o Man Booker International Prize de 2018 .

"Sobre os ossos dos mortos", ela situa a ação em uma região montanhosa da Polônia, entre os anos 2000 e 2008, onde uma série de assassinatos estranhos intrigam a polícia e aterrorizam os moradores.

Capa de 'Sobre os ossos dos mortos' Foto: Divulgação
Capa de 'Sobre os ossos dos mortos' Foto: Divulgação

Marcas de animais aparecem em todas as cenas dos crimes, como se os próprios animais da região estivessem deixando alguma mensagem. Todas as vítimas eram caçadores convictos. Estaria o Reino Animal se vingando da humanidade?

No meio da intriga, surge uma idosa excêntrica. Isolada de todos, ressentida com a sociedade, Janina Doucheyko escreve cartas ameaçadoras para as autoridades. Engenheira aposentada,  conspira contra os caçadores da região, vê pares mortos, milita pelo vegetarianismo e prevê as mortes através do horóscopo.

Com uma trama ao mesmo tempo macabra e subversiva, Olga faz um retrato ácido da sociedade polonesa e transforma uma investigação convencional em uma busca existencial.

Início do primeiro capítulo de 'Sobre os ossos dos mortos'

Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.

Se tivesse examinado nas Efemérides o que acontecia no céu naquela noite, nem me deitaria para dormir. Entretanto, caí num sono muito profundo; recorri ao chá de lúpulo e tomei ainda dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando fui acordada no meio da noite pelo som — violento, excessivo, e por isso agourento — de alguém batendo na minha porta, não consegui me recompor. Levantei às pressas e fiquei em pé junto da cama, vacilando, pois o corpo sonolento, trêmulo, não conseguia dar o salto da inocência do sono para a vigília. Desfaleci e cambaleei, como se estivesse prestes a perder a consciência. Isso tem me acontecido ultimamente, e está relacionado com as minhas moléstias. Precisei me sentar e repetir algumas vezes para mim mesma: estou em casa, é noite, alguém está batendo na porta, e só então é que consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos no escuro, podia ouvir que aquele que tinha batido agora circundava a casa, murmurando. No térreo, na caixa do relógio de luz, guardo gás de pimenta que ganhei de Dionísio por causa dos caçadores ilegais. Foi justamente nele que pensei agora. Consegui achar na escuridão o formato frio e familiar do aerossol e, assim armada, acendi a luz do lado de fora. Olhava para o alpendre pela janela lateral.

A neve rangeu e apareceu no meu campo de visão o vizinho que costumo chamar de Esquisito. Estava enrolado numa velha samarra, com a qual às vezes o via quando trabalhava do lado de fora de casa. Debaixo dela podia ver seu pijama listrado e suas botas pesadas para caminhar nas montanhas.

— Abra — disse.

Com um espanto evidente olhou para o meu terno de linho (durmo vestida com as peças que o Professor e sua esposa quiseram jogar fora no verão, e que me lembram da moda antiga e da minha juventude. Assim, combino o útil com o sentimental) e entrou sem pedir licença.

— Vista-se, por favor. Pé Grande morreu.

Por um instante perdi a fala e, em silêncio, calcei as botas de cano alto e vesti o primeiro casaco de frio que encontrei no cabideiro. Lá fora, a neve, na mancha de luz jogada pelo abajur no alpendre, virava uma ducha vagarosa e sonolenta. Esquisito estava do meu lado, calado, alto, esbelto e ossudo como uma silhueta esboçada com alguns riscos a lápis. A neve caía do seu corpo ao mínimo movimento, como se fosse um cavaquinho polvilhado com açúcar de confeiteiro.

— Como assim “está morto”? — perguntei, por fim, ao abrir a porta, com a garganta apertada, mas ele não me respondeu.

De modo geral, ele fala pouco. Deve ter Mercúrio num signo silencioso, acho que em Capricórnio ou em conjunção, quadratura, ou talvez em oposição a Saturno. Podia ser, também, um Mercúrio retrógrado — que, nesse caso, acarretava discrição.

Saímos de casa e, imediatamente, nos envolveu esse ar muito familiar — frio e úmido — que nos relembra todos os invernos que o mundo não fora criado para a humanidade, e durante pelo menos a metade do ano nos demonstra a sua hostilidade. O frio atacou brutalmente as nossas bochechas, e emergiram nuvens brancas de vapor de nossas bocas. A luz no alpendre se apagou automaticamente e caminhamos pela neve crepitante na 9 escuridão completa, a não ser pela lanterna de cabeça de Esquisito que penetrava as trevas num único ponto oscilante logo à sua frente. Eu andava na penumbra, saltitando às suas costas.

— Não tem lanterna? — perguntou.

Claro que tinha, mas conseguiria achá-la apenas de manhã, à luz do dia.  Com as lanternas é sempre assim: são visíveis só durante o dia.