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Cultura

LGBTQI+... Sigla que não para de crescer reflete lutas e conquistas do movimento

Tanto caractere pode parecer confuso, mas a gente explica. Ou melhor, eles mesmos contam
Da esquerda para a direita, Gabe Passareli, Caio Riscado, Amiel Vieira, Naomi Savage, Ana Claudino, João Moraes e Ma.Ma. Horn Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Da esquerda para a direita, Gabe Passareli, Caio Riscado, Amiel Vieira, Naomi Savage, Ana Claudino, João Moraes e Ma.Ma. Horn Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — GLS, GLBT, LGBT, LGBTI... Se a sua impressão é que a sigla vem sendo esticada, o sexólogo e diretor da Aliança Nacional LGBTI, Toni Reis, confirma: você não está sozinho.

— Volta e meia alguém diz: “Todo ano você aparece com uma letra nova.” Daí explico que a sociedade evoluiu, as pessoas estão assumindo mais as suas identidades, orientações e expressões — diz ele, que é militante há mais de 30 anos e lançou, em junho, versão ampliada do seu “Manual de Comunicação LGBTI+” , com um glossário de termos desse universo.

Grosso modo, o documento detalha quatro questões principais: a presença do sexo biológico (pênis ou vagina), a expressão de gênero (como a pessoa se sente, se veste, se apresenta), a identidade de gênero (com qual ela se identifica) e, por fim, a orientação sexual (para onde aponta a libido). Todas manifestações que, a rigor, estariam contempladas na sigla: L de lésbica, G de gay, B de bissexual, T de travesti e transexual, e I de intersexo, uma das últimas letras a entrarem no jogo. O símbolo de “mais” englobaria outras variantes.

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A ideia do manual é justamente evitar que essa sopa de letrinhas entorne o caldo. Mas a própria sigla está longe de ser consenso. Se há organizações que optam por “LGBTI”, outras dizem que esses caracteres não dão conta. Há quem defenda a inclusão do Q de queer, por exemplo, e quem diga que ele é mais um campo de pensamento do que uma identidade. E, se a militância mudou, por que sua sigla não devia mudar também?

“Muita gente critica porque são muitas letras, acho que 46... Eu rebato: “Se reclamar, amanhã vai ter 48.” Não se trata de questionar as gavetas, mas, sim, o tamanho da cômoda.”

Ulisses Carrilho
Curador da EAV, do Parque Lage, que exibe a 'Queermuseu'

Idealizador e diretor do festival Mix Brasil, há 26 edições celebrando a diversidade, Andre Fischer se identifica com o primeiro grupo.

— Você precisa de uma referência pra entender que faz parte de uma comunidade, ainda que ela seja completamente difusa. E isso é muito importante quando estamos buscando uma identidade. Até porque, seja você não binário, queer, fluido... vai apanhar do mesmo jeito na Rússia. É uma população que corre riscos — enfatiza.

CRÍTICA: Falta ‘queer’ em ‘Queermuseu’

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Ulisses Carrilho, curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde está em cartaz a mostra “Queermuseu” , diz que a sigla não deve ser encarada como prisão, e, sim, um “esforço coletivo para abrir as possibilidades”:

— Muita gente critica porque são muitas letras, acho que 46... Eu rebato: “Se reclamar, amanhã vai ter 48.” Não se trata de questionar as gavetas, mas, sim, o tamanho da cômoda.

TUDO COMEÇA NO NOME

Roney Polato, coordenador da especialização em relações de gênero e sexualidades da Universidade Federal de Juiz de Fora, concorda. Para ele, dificilmente se chegará a uma sigla que agrade a todos.

— Sempre haverá sujeitos reivindicando a sua existência. E isso passa pela representação na linguagem. Aquilo que não tem nome não existe — sentencia. — As alterações na sigla mostram o quanto o movimento é vivo, complexo e precisa se reinventar para abarcar uma multiplicidade.

Representada pelo “T” e também receptiva a novas expressões, Fran Demétrio defende que a incorporação de identidades precisa ser baseada no diálogo.

— Acredito em processos fortalecedores das nossas lutas políticas, mas sem imposições e hierarquizações —sintetiza ela, que coordena o laboratório de estudos sobre saúde, gênero e sexualidades da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Debates, de fato, mudaram a sigla. Em 2008, por exemplo, após votação dentro do movimento que apontou a necessidade de mais visibilidade lésbica, o “L” foi puxado pra frente e chegou-se ao “LGBT”. Mais recentemente, pessoas intersexo evidenciaram suas pautas e conseguiram ter o “I” incluído por alguns grupos.

“Se você continua aumentando as letrinhas, o efeito colateral poderá ser de diluir as identidades, em vez de afirmá-las. Pense em uma comunidade que comporta tantas letras que, no final, não há ideia clara sobre nenhuma delas.”

João Silvério Trevisan
Escritor e militante

Doutorando em Bioética pela UFRJ, Amiel Modesto Vieira é um dos militantes que engrossaram esse coro. Nascido com genitália ambígua, ele passou por uma cirurgia para ser enquadrado no gênero feminino quando tinha menos de 9 meses. Hoje é um homem trans.

— A medicina só consegue enxergar como normal um corpo que seja de homem ou mulher, embora haja muitas outras corporalidades — pondera. — Então, quando se depara com um intersexo, adotam-se procedimentos cirúrgicos e tratamentos para que essa pessoa seja adequada a um dos dois gêneros. Isso é feito sem o consentimento dela, já que as intervenções acontecem em sujeitos de até 2 anos. Lutamos pelo fim dessa mutilação genital.

RISCO DE DISPERSÃO E UM NOVO TIPO DE ATIVISMO

Autor do livro “Devassos no paraíso” (1986), referência no estudo da história da homossexualidade brasileira que agora ganha edição ampliada da Objetiva, João Silvério Trevisan enaltece a pluralidade de identidades, mas pondera que excessos podem ter efeito contrário ao desejado pela militância.

— Em muitas circunstâncias, há uma tendência de se fechar na sua letrinha. Movimentos que incluem vários tipos de oprimidos não podem ser conduzidos de maneira compartimentada. Receio que essa radicalização da afirmação das identidades acabe levando cada uma dessas letras de novo para dentro do armário — diz o escritor, que enxerga risco de “dispersão”. — Se você continua aumentando as letrinhas, o efeito colateral poderá ser de diluir as identidades, em vez de afirmá-las. Pense em uma comunidade que comporta tantas letras que, no final, não há ideia clara sobre nenhuma delas.

A recente explosão de letrinhas, aliás, é, para a antropóloga e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, Regina Facchini, reflexo de um novo tipo de militância, pavimentada por dois fenômenos: a popularização da internet e o ingresso de um novo perfil de pessoas no ensino superior nos anos 2000, interessadas em estudar direitos das minorias. Assim como ocorreu com o feminismo e o movimento negro, diz ela, o interlocutor do ativismo não é mais apenas o Estado, e as disputas, agora muito focadas na desconstrução de preconceitos, são essencialmente travadas nas redes sociais.

“Espero que, em 30 anos, não haja mais siglas. Seremos somente seres humanos sexuais, uma população de 200 milhões de expressões, identidades e orientações sexuais.”

Toni Reis
Sexólogo e diretor da Aliança Nacional LGBTI

Nesse contexto, ela diz que a sigla não tem o peso que teve nos anos 1990, quando a luta por direitos precisava responder às questões: quem é você e do que você precisa?

— Todos sabiam que a sigla não ia descrever o que cada um é, mas era uma identidade que minimamente organizava quem precisava de políticas específicas — diz Regina.

Ela reforça que o bom e velho ativismo acontece em paralelo. Um exemplo é a autorização no STF, em março, para que pessoas trans possam mudar de nome sem decisão judicial ou laudo da cirurgia de redesignação de sexo.

Para Regina, a internet também deu acesso a novas formas de classificar sexualidades, expressões e identidades de gênero. Um ambiente favorável à “democracia sexual” sonhada por Toni, da Aliança LGBTI:

— Espero que, em 30 anos, não haja mais siglas. Seremos somente seres humanos sexuais, uma população de 200 milhões de expressões, identidades e orientações sexuais.

LINHA DO TEMPO*: NEGOCIAÇÕES E CONQUISTAS DA SIGLA

Anos 1970 — MHB

O Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) contemplava homens e mulheres cis homossexuais.

Início dos 1990 — MGL

Começa o Movimento de Gays e Lésbicas (MGL), para incluir as lésbicas, que reivindicavam visibilidade.

Meio dos 1990 — GLT

A sigla para Gays, Lésbicas e Travestis levanta bandeiras contra a epidemia da Aids e a violência que dizimava travestis.

1995 — 1º Projeto de Lei

Marta Suplicy propõe lei sobre união homoafetiva. Em 2011, o STF aprova casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

1997 — Avanço médico

Conselho Federal de Medicina autoriza ação experimental para mudanças corporais em pessoas transexuais.

1998 — GLBT

Ativistas vão a Amsterdã e, seguindo consenso internacional, incluem o “B”, de bissexual, adotado na 2ª parada do orgulho.

2008 — LGBT

Após votação com vários representantes do movimento, o “L” foi para o início da sigla para maior visibilidade às lésbicas.

Anos 2010 — Novas letras

Com a internet e as redes sociais, surgem outras expressões de identidade e um novo tipo de ativismo, menos escorado na sigla.

*Com informações de:  Regina Facchini, antropóloga e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp