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Cultura

Linn da Quebrada: 'Não se posicionar já é se posicionar, não existe neutralidade'

Natasha em 'Segunda chamada', artista se prepara para lançar o documentário 'Bixa travesty', que coleciona prêmios no exterior
A rapper e atriz Linn da Quebrada, que vive Natasha em 'Segunda chamada' Foto: Globo/ Fábio Rocha
A rapper e atriz Linn da Quebrada, que vive Natasha em 'Segunda chamada' Foto: Globo/ Fábio Rocha

RIO - Moradora da Fazenda da Juta, na Zona Leste de São Paulo, a rapper Linn da Quebrada é uma autodidata que aprendeu muito do que sabe fora da escola. Mesmo assim (e por isso mesmo) ela não desdenha da importância da educação formal.

— Entendo como a rua, as experiências e as relações que a gente tem para além da escola são muito importantes. Não estudei em nenhuma faculdade, e tudo que eu aprendi e venho aprendendo foi de forma autodidata. Mas entendo completamente o quanto é importante que a gente ocupe as escolas e a academia também. Para que nós possamos ser também os corpos que escrevem as leis, que produzem saber por dentro do sistema — diz a artista.

Aos 29 anos, Linn vive seu melhor ano na carreira: além de despontar como atriz em “Segunda chamada” , série da TV Globo em que interpreta a estudante trans Natasha, ela estreia em 21 de novembro nos cinemas o filme “Bixa travesty” . Dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla, o inventivo documentário coleciona prêmios pelo mundo, entre eles o de melhor documentário do Teddy Awards, um dos mais prestigiados do cinema LGBT.

E ela continua em ação na música: no começo do mês, lançou um novo single e clipe, “Oração” , e ainda será anfitriã do festival Afropunk , que acontece em 19 e 20 de novembro em São Paulo. Na entrevista a seguir, Linn compartilha um pouco do seu universo.

Como foi o convite para entrar em “Segunda chamada”?

Pensei bastante porque tinha minha carreira como cantora e mais uma série de compromissos e sabia que teria um envolvimento intenso pelos próximos cinco meses. Na conversa com as autoras, fui entendendo a importância de aceitar e me comprometer com esse papel não só pela minha responsabilidade, mas pelo impacto que isso poderia ter, em respeito à reinvenção do papel ocupado pelas travestis na teledramaturgia.

Você encarou então como uma missão?

Não uma missão, não acredito nisso. Mas gosto da palavra responsabilidade. Mas era algo com o que me identificava, que tratava de temas muito importantes. Fiquei extremamente feliz de desbravar esse outro campo artístico.

Para criar a Natasha, você se inspirou em outras mulheres, além de você mesma?

A história da Natasha, felizmente e infelizmente, acaba se cruzando, inclusive nas violências, com a história de muitas outras pessoas trans e travestis no Brasil. O grande lance foi me aproximar da Natasha e entender que apesar de sermos muito diferentes, nós também trazemos pontos em comum. Não só pela educação (Linn completou os estudos em um supletivo) , mas pela coragem, pela determinação em conquistar espaços com dignidade. E também olhei para outras pessoas trans que me inspiraram e ajudaram a construir a Natasha.

A série toca em temas importantes como violência de gênero, intolerância, criminalidade. Você acredita que a série consegue quebrar preconceitos?

Acredito que a série, assim como qualquer outro material artístico, tem a responsabilidade e a função de inventar isso que eu chamo de um imaginário social. Quando temos esses temas sendo abordados dessa forma com tamanho cuidado, numa rede de TV de tanto alcance, isso também nos ajuda a construir outros valores sociais. Tem essa responsabilidade de expandir nossos horizontes em determinados assuntos.

Por exemplo, o episódio que tratou sobre o aborto. A série acaba dando complexidade a diversos temas e faz com que a nossa forma de olhar para essas questões amplifique e humanize, da mesma forma que faz também com as discussões sobre educação, intolerância religiosa.

Fale sobre “Bixa travesty”.

Desde o início entendi a importância do filme para a disputa de narrativas, na possibilidade de eu contar minha própria história. Acredito que seja não uma obra de ficção, mas de fricção. Por isso se trata de um doc-fic: um filme em que há uma fricção entre realidade e ficção. Entendo que não tenho nenhum compromisso com a realidade e com o realismo.

O que quero é poder tratar e dividir o meu corpo de forma afetuosa com outras parceiras, com pessoas que podem se identificar com o meu filme. E espero que o filme possa servir de motor para que elas possam partir para seus próprios processos, construir suas próprias identidades. E também que o filme ajude a gente a entender dentro da realidade política.

É muito importante que ele ocupe as salas de cinema no governo de Bolsonaro, numa época tão complexa e contraditória. O filme, para mim, evidencia essa disputa de linguagem e essa disputa de poder. E evidencia a tal ponto que faz todo sentido que a classe conservadora esteja com medo e que esteja reagindo dessa forma tão reacionária.

E por que as pessoas têm medo de uma mulher trans?

As pessoas não tem, é a classe conservadora que tem medo. Por muito tempo, as histórias e as vidas que importavam ser contadas não eram as nossas. E agora temos que conquistar novos espaços para contar a nossa história. Isso faz com que a classe conservadora se veja perdendo espaço e veja seus privilégios ameaçados. Por isso que nossos corpos assustam.

Quando uma mulher negra, uma travesti negra, se move, na base dessa hierarquia, todo o sistema se move junto com ela ( Linn aqui faz referência a uma famosa frase da ativista americana Angela Davis ). O meu movimento e das minhas desorganiza todo esse sistema, faz com que a minha vida seja vista com outros olhos. Isso faz com que a gente tenha que se revisitar e perceber que os valores dos nossos sistemas estão antigos e falidos. Por isso que isso deve assustar: o novo assusta, a mudança dá medo. Se vai mudar, quer dizer que as nossas estruturas vão mudar, que as forma como as coisas se estabelecem vão mudar.

A atriz e rapper Linn da Quebrada Foto: Marie Rouge / Photo Marie Rouge pour Libérati
A atriz e rapper Linn da Quebrada Foto: Marie Rouge / Photo Marie Rouge pour Libérati

No filme você se expõe bastante o seu corpo. Isso não foi difícil para você?

Olha, eu não diria que foi difícil porque acho que o nosso corpo está exposto socialmente às vezes de forma muito mais cruel. Quando a gente pensa na palavra travesti, as coisas com as quais o nosso corpo está ligado são a violência e a morte, e à erotização. Quando exponho meu corpo no meu filme, eu faço isso da maneira mais cuidadosa, íntegra e cruel que eu posso, no sentido de tentar ganhar novos limites.

Foi um processo orgânico,  que eu achei justo para que eu mesma pudesse enxergar meu corpo com outros olhos. Para que eu pudesse entender as minhas fragilidades, onde elas estão localizadas, e como eu poderia transformá-las em potência.

Você também lançou “Oração”, uma música que fala de religiosidade e espiritualidade. O que quis dizer com ela?

A música quer passar exatamente o que ela passa. Um dos espaços que nós travestis somos excluídas é o espaço do sagrado, da religiosidade. Entendo que religião significa religar, conectar. Eu gosto muito de pensar que a palavra Deus é formada de “eus”. Justamente por isso, só posso acreditar em um Deus que também acredite na minha existência.

Brinco seriamente com as palavras. Costumo pensar na oração indagando as pessoas: entre a oração e ereção, para quem você se ajoelha? Para quem dobramos os nossos joelhos? Busco construir na música um espaço para que a gente repense o sagrado, como um processo de cura dos nossos corpos, de cuidar do nosso espírito.

Houve um episódio complicado na gravação do clipe. O que aconteceu?

Eu tive todo o cuidado de fazer com que o clipe fosse um espaço de segurança para nós. Encontrei esse espaço que é uma igreja abandonada, fomos à prefeitura, conseguimos autorização para usá-lo, cuidamos de tudo, nos comunicamos com o pessoal do entorno, o comércio local. Todos foram receptivos.

Só que quando chegou no dia da gravação, apareceu um suposto dono já acompanhado de duas viaturas da polícia, falando que nós deveríamos sair do local imediatamente, mesmo com autorização. E se posicionando de forma violenta, dizendo que se a gente não saísse, iriam quebrar todos os equipamentos. Mesmo que estivéssemos respaldadas pela prefeitura, vi que, quando os homens não querem, não podemos fazer.

Só conseguimos quando acionamos advogados, e só tivemos uma hora para gravar. Gostaria de desenvolver minhas ideias da forma como eu tinha planejado, mas isso também é um privilégio que só a branquitude e a cisgeneridade têm. Mesmo assim, conseguimos fazer um trabalho lindo, que considero muito potente.

Você acha que foi censurada?

Eu acho que sim. O que é censura, senão a proibição dos nossos corpos de ocupar um espaço? E, além da censura, é uma violência sobre quem pode e quem não pode. Várias outras pessoas já gravaram ali, e nunca houve nenhuma medida dessa forma. Mas quando chegaram todas aquelas travestis, mesmo já tendo ido lá dois dias antes com uma equipe para limpeza, isso aconteceu.

Queria falar sobre “pink money” (expressão usada para falar do dinheiro gerado pelo público LGBT). Para você, artista que lucra com o público LGBT pode não querer se posicionar sobre certos assuntos?

Não se posicionar já é se posicionar. Não existe neutralidade. Acho que não se posicionar diante de questões que atingem explicitamente o público com o qual você se comunica já é uma maneira de evidenciar que tipo de mercado você quer construir. E que tipo de interação entre aquilo que você produz e aquilo que é consumido, e como você se apropria de certos assuntos quando é interessante e como você se isenta desses mesmos assuntos quando não é interessante para você. São questões são complexas, mas ao mesmo tempo a gente consegue entender como essas decisões são tomadas ou não.