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Cultura

Lino Arruda aborda transexualidade e deficiência física em zines autobiográficos e participa de mostra do Itaú Cultural

Quadrinista debate masculinidades na abertura da sétima edição de 'Todos os gêneros', nesta segunda-feira
O quadrinista Lino Arruda, autor da HQ "Monstrans", a ser publicada em 2021 Foto: Rachel Castillo / Divulgação
O quadrinista Lino Arruda, autor da HQ "Monstrans", a ser publicada em 2021 Foto: Rachel Castillo / Divulgação

SÃO PAULO –– O avô do quadrinista Lino Arruda não reconheceu o neto quando o viu pela última vez, pouco antes de morrer. Ele se lembrava apenas de Lina, a neta que havia se afastado da família quando começou a tomar hormônios masculinos. Lino até tentou se fazer passar pela Lina que o avô conhecera, escolhendo uma roupa menos masculina, mas não funcionou. O avô não sabia quem era aquele rapaz.

A despedida do avô é a última das três histórias que Lino desenha na graphic novel “Monstrans: experimentando horrormônios”, inspirada em suas vivências, primeiro como uma mulher lésbica e depois como um homem trans. A HQ também se baseia na pesquisa que desenvolveu em seu doutorado, sobre a autorrepresentação de travestis e transexuais em histórias em quadrinhos e zines latino-americanos.

“Monstrans” está sendo finalizado com o apoio do projeto Rumos, do Itaú Cultural. Lino costuma compartilhar alguns vídeos sobre o processo criativo de “Monstrans” em sua conta no Instagram: @monstrans_hq . A HQ deve ganhar, no ano que vem, uma edição independente e em três idiomas: português, espanhol e inglês.

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Nesta segunda-feira (24), às 19h, Lino participa da mesa de abertura da sétima edição de “Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade”, no site do Itaú Cultural . O quadrinista conversa sobre “Masculinidades em trânsitos” com o escritor Marcelino Freire e o jornalista Airan Albino, cofundador do coletivo MilTons, que propõe discussões sobre as masculinidades negras. Esta edição da mostra “Todos os Gêneros” será completamente on-line e, até domingo (30), contará com debates, performances, um show do rapper Rico Dalasam e espetáculos teatrais, como uma encenação de “Barrela”, texto do dramaturgo Plínio Marcos sobre violência sexual em prisões masculinas. Também será disponibilizada uma publicação virtual que reúne textos de escritores como o paulistano Ferréz e o moçambicano Mia Couto e uma história desenhada por Lino: “Um homem pra chamar de meu mesmo que seja eu”.

Making of do zine "Monstrans", do quadrinista Lino Arruda Foto: Lino Arruda / Divulgação
Making of do zine "Monstrans", do quadrinista Lino Arruda Foto: Lino Arruda / Divulgação

— Nessa história, o personagem, um homem trans, sai de casa porque a família e os amigos são contra a sua transição de gênero. Quando ele encontra uma “masculinidade hegemônica”, um homem cisgênero e hétero que pensa que ele também é um homem cisgênero e heterossexual, ele vira um monstro, um lobisomem — conta Lino, por Skype. — A figura do monstro é central na autorrepresentação de transexuais e travestis em HQs e zines. O lobisomem é uma figura que uso em diversos quadrinhos.

Nascido em Campinas, no interior de São Paulo, Lino descobriu os monstros ao viajar de carona pela América do Sul após começar a terapia hormonal. Ao visitar bibliotecas anarquistas ligadas à comunidade LGBT, ele descobriu diversos zines nos quais autores transexuais e travestis representavam a si mesmos como criaturas bizarras e decidiu se debruçar sobre o assunto. Artista visual formado pela Unicamp, Lino mergulhou de vez no mundo dos quadrinhos em 2011, quando ainda era Lina, porque quis desenhar a história de uma amiga.

— Essa amiga contou que, sempre que ela entrava no ônibus, os passageiros faziam o sinal da cruz. Ela pensava: “Como eles sabem que eu sou lésbica?”. Só anos depois ela percebeu que pegava o ônibus em frente a uma igreja — conta Lino. — Achei que essa história precisava circular, porque fala da experiência cotidiana de uma mulher lésbica. Me juntei com um amigo, um homem trans, e fizemos um zine, “Sapatoons”, para conta histórias nossas.

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Além dos monstros, três temas autobiográficos são recorrentes nos zines de Lino: a transmasculinidade, a lesbiandade e a deficiência física. Lino nasceu com uma deformação nas pernas e fez tratamentos fisioterapêuticos a vida toda. Hoje, ele se locomove com a ajuda de uma bengala e às vezes precisa recorrer a uma cadeira de rodas. Quando ainda era criança, percebeu que a deficiência e o gênero sempre se cruzavam na fisioterapia.

–— Para me ajudar a dormir de lado, a fisioterapeuta me deu um travesseiro enorme e me disse para dormir abraçada a ele. Ela me perguntou: “Você tem namorado?”. Quando respondi que não, ela disse: “Então vamos chamar ele de Ricardão”. Eu tinha cinco anos — recorda. — Eu era uma criança lésbica, a única lésbica da escola, aquela em quem as pessoas jogavam comida.

Trecho da história em quadrinhos "Um homem para chamar de meu mesmo que seja eu", de Lino Arruda Foto: Reprodução / Divulgação
Trecho da história em quadrinhos "Um homem para chamar de meu mesmo que seja eu", de Lino Arruda Foto: Reprodução / Divulgação

Lino recorda os dilemas da fisioterapia na primeira das três histórias de “Monstrans”. Na segunda, ele discute como as masculinidades lésbicas formaram o homem trans que ele é hoje.

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É nessa interseção entre deficiência física, lesbiandade e transexualidade que ele se apoia para pensar sua própria masculinidade:

— Durante meu processo de transição, percebi que se fosse grosseiro, rude e falasse pouco, passava mais facilmente como homem do que se falasse “por favor” e “perdão”. Há essa tentação de emular uma masculinidade fácil, que também é uma das piores, das menos empáticas e solidárias e das mais individualistas. É importante que tenhamos outras referências de masculinidade e que possamos depurá-las para pensar o que de fato queremos construir.