SÃO PAULO –– O avô do quadrinista Lino Arruda não reconheceu o neto quando o viu pela última vez, pouco antes de morrer. Ele se lembrava apenas de Lina, a neta que havia se afastado da família quando começou a tomar hormônios masculinos. Lino até tentou se fazer passar pela Lina que o avô conhecera, escolhendo uma roupa menos masculina, mas não funcionou. O avô não sabia quem era aquele rapaz.
A despedida do avô é a última das três histórias que Lino desenha na graphic novel “Monstrans: experimentando horrormônios”, inspirada em suas vivências, primeiro como uma mulher lésbica e depois como um homem trans. A HQ também se baseia na pesquisa que desenvolveu em seu doutorado, sobre a autorrepresentação de travestis e transexuais em histórias em quadrinhos e zines latino-americanos.
“Monstrans” está sendo finalizado com o apoio do projeto Rumos, do Itaú Cultural. Lino costuma compartilhar alguns vídeos sobre o processo criativo de “Monstrans” em sua conta no Instagram: @monstrans_hq . A HQ deve ganhar, no ano que vem, uma edição independente e em três idiomas: português, espanhol e inglês.
Gay, trans, mulher, negro e índio: as novas faces de Jesus estão dando o que falar
Nesta segunda-feira (24), às 19h, Lino participa da mesa de abertura da sétima edição de “Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade”, no site do Itaú Cultural . O quadrinista conversa sobre “Masculinidades em trânsitos” com o escritor Marcelino Freire e o jornalista Airan Albino, cofundador do coletivo MilTons, que propõe discussões sobre as masculinidades negras. Esta edição da mostra “Todos os Gêneros” será completamente on-line e, até domingo (30), contará com debates, performances, um show do rapper Rico Dalasam e espetáculos teatrais, como uma encenação de “Barrela”, texto do dramaturgo Plínio Marcos sobre violência sexual em prisões masculinas. Também será disponibilizada uma publicação virtual que reúne textos de escritores como o paulistano Ferréz e o moçambicano Mia Couto e uma história desenhada por Lino: “Um homem pra chamar de meu mesmo que seja eu”.
— Nessa história, o personagem, um homem trans, sai de casa porque a família e os amigos são contra a sua transição de gênero. Quando ele encontra uma “masculinidade hegemônica”, um homem cisgênero e hétero que pensa que ele também é um homem cisgênero e heterossexual, ele vira um monstro, um lobisomem — conta Lino, por Skype. — A figura do monstro é central na autorrepresentação de transexuais e travestis em HQs e zines. O lobisomem é uma figura que uso em diversos quadrinhos.
Nascido em Campinas, no interior de São Paulo, Lino descobriu os monstros ao viajar de carona pela América do Sul após começar a terapia hormonal. Ao visitar bibliotecas anarquistas ligadas à comunidade LGBT, ele descobriu diversos zines nos quais autores transexuais e travestis representavam a si mesmos como criaturas bizarras e decidiu se debruçar sobre o assunto. Artista visual formado pela Unicamp, Lino mergulhou de vez no mundo dos quadrinhos em 2011, quando ainda era Lina, porque quis desenhar a história de uma amiga.
— Essa amiga contou que, sempre que ela entrava no ônibus, os passageiros faziam o sinal da cruz. Ela pensava: “Como eles sabem que eu sou lésbica?”. Só anos depois ela percebeu que pegava o ônibus em frente a uma igreja — conta Lino. — Achei que essa história precisava circular, porque fala da experiência cotidiana de uma mulher lésbica. Me juntei com um amigo, um homem trans, e fizemos um zine, “Sapatoons”, para conta histórias nossas.
Em tradução: Jovens autores LGBT brasileiros serão publicados nos EUA em 2020
Além dos monstros, três temas autobiográficos são recorrentes nos zines de Lino: a transmasculinidade, a lesbiandade e a deficiência física. Lino nasceu com uma deformação nas pernas e fez tratamentos fisioterapêuticos a vida toda. Hoje, ele se locomove com a ajuda de uma bengala e às vezes precisa recorrer a uma cadeira de rodas. Quando ainda era criança, percebeu que a deficiência e o gênero sempre se cruzavam na fisioterapia.
–— Para me ajudar a dormir de lado, a fisioterapeuta me deu um travesseiro enorme e me disse para dormir abraçada a ele. Ela me perguntou: “Você tem namorado?”. Quando respondi que não, ela disse: “Então vamos chamar ele de Ricardão”. Eu tinha cinco anos — recorda. — Eu era uma criança lésbica, a única lésbica da escola, aquela em quem as pessoas jogavam comida.
Lino recorda os dilemas da fisioterapia na primeira das três histórias de “Monstrans”. Na segunda, ele discute como as masculinidades lésbicas formaram o homem trans que ele é hoje.
Representatividade: 'A pluralidade sexual está na ficção e na vida dos leitores', dizem autores e editores de livros para jovens
É nessa interseção entre deficiência física, lesbiandade e transexualidade que ele se apoia para pensar sua própria masculinidade:
— Durante meu processo de transição, percebi que se fosse grosseiro, rude e falasse pouco, passava mais facilmente como homem do que se falasse “por favor” e “perdão”. Há essa tentação de emular uma masculinidade fácil, que também é uma das piores, das menos empáticas e solidárias e das mais individualistas. É importante que tenhamos outras referências de masculinidade e que possamos depurá-las para pensar o que de fato queremos construir.