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Cultura

Literatura: ‘caça’ a beijo gay na Bienal simbolizou 2019 de intolerância

Ameaça de censura em evento no Rio esteve entre ataques a obras e autores; títulos de teor político se destacaram
Agentes da SEOP e o seu Secretário Wolney Dias procuram na Bienal do Livro uma edição de OS Vingadores, proibida pelo prefeito Marcelo Crivella. Os agentes não acharam nenhum exemplar Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Agentes da SEOP e o seu Secretário Wolney Dias procuram na Bienal do Livro uma edição de OS Vingadores, proibida pelo prefeito Marcelo Crivella. Os agentes não acharam nenhum exemplar Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

RIO — Em 2019, tentativas de censura levaram tensão política à literatura brasileira, como poucas vezes se viu antes. O caso mais marcante aconteceu em setembro, quando o prefeito Marcelo Crivella mandou recolher a história em quadrinhos “Vingadores: A cruzada das crianças” , da Marvel, na Bienal Internacional do Livro do Rio. O livro traz um beijo gay entre dois personagens. A cena dos fiscais da prefeitura circulando pelos estandes do Riocentro à procura de exemplares da HQ foi algo inédito na história do evento, provocando uma guerra de liminares e um abaixo-assinado de autores e editores em favor da liberdade de expressão.

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Além disso, o youtuber Felipe Neto comprou 14 mil exemplares de obras com temática LGBT de diversas editoras e as distribuiu para o público, que também se manifestou. Dezenas de visitantes percorreram corredores do Riocentro empunhando livros e gritando palavras de ordem contra a censura. No fim, a HQ foi liberada pela justiça e teve todos os seus exemplares vendidos (coisa que dificilmente aconteceria sem a ordem do prefeito).

Aliás, o efeito Streisand (quando um ato de censura acaba ajudando a promover a obra censurada) apareceu também no episódio envolvendo o livro juvenil “Enfim, capivaras”, de Luisa Geisler. A autora gaúcha foi impedida de participar da Feira do Livro de Nova Hartz (RS) , por causa do suposto “linguajar inadequado” da obra. Ela não foi ao evento e a obra ainda foi retirada das escolas do município, mas acabou se esgotando em outras feiras das quais Luisa participou.

Políticos contra autores

Foi um ano em que políticos atacaram diretamente obras de autores nacionais. Se “Enfim, capivaras” virou pauta dos vereadores de Nova Hartz, “O útero é do tamanho de um punho”, livro de poemas de Angélica Freitas lançado em 2012, foi alvo de deputados catarinenses. Em uma sessão na Assembleia Legislativa do estado, eles acusaram a publicação de promover “ideologia de gênero” e tentaram barrá-la da lista de obras obrigatórias da Universidade Federal de Santa Catarina. A proposta, no entanto, acabou não sendo votada.

Ainda em Santa Catarina, outro episódio de intolerância ocorreu quando a organização da 13ª Feira do Livro de Jaraguá do Sul anunciou o cancelamento da participação da jornalista Miriam Leitão e do sociólogo Sérgio Abranches um dia depois de confirmar a presença de ambos. O motivo alegado pela direção do evento foi a garantia de “segurança” dos convidados, depois que uma petição com mais de três mil assinaturas foi encaminhada à feira repudiando o “viés ideológico e posicionamento” dos autores, e exigindo o cancelamento das palestras.

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A guerra cultural, como vem sendo chamado o acirramento do debate político e moral em torno da produção artística, chegou também ao Prêmio Camões, a maior láurea da literatura lusófona. O presidente Jair Bolsonaro até hoje se recusa a assinar o diploma do vencedor de 2019 , o brasileiro Chico Buarque (crítico do político, o autor disse ter considerado a recusa um “segundo Prêmio Camões”). Com ou sem assinatura , o governo português, que organiza o prêmio junto com o Brasil, avisou que Chico receberá a honraria em abril de 2020.

Prêmio Nobel polêmico

Na mesma seara dos prêmios, o Nobel de Literatura, depois de não consagrar ninguém em 2018 por causa de um escândalo sexual que respingou na Academia Sueca, trouxe dois vencedores em 2019: a polonesa Olga Tokarczuk e o austríaco Peter Handke. Este último foi prontamente detonado em virtude de seu apoio ao sérvio Slobodan Milosevic , processado por crimes contra a Humanidade quando ocupava a presidência durante a Guerra dos Bálcãs.

Para 2020, espera-se o desenrolar de uma polêmica criada em novembro, com o anúncio de que a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-1979) será a autora homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Houve cisão na cena literária e até autor anunciando que recusaria um eventual convite para o evento.

Entre as razões da discórdia estão o apoio da poeta ao golpe militar de 1964, e opiniões supostamente preconceituosas sobre a sociedade brasileira expressas em suas cartas, além da estranheza à escolha de homenagear um nome estrangeiro (algo inédito no evento). A Flip ainda estuda se manterá ou não a decisão.

Num ano marcado pelo acirramento dos discursos, nada mais natural que livros com teor político se destacassem. Uma obra difícil e forte sobre a herança colonial, “Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano”, da portuguesa Grada Kilomba, apareceu no topo dos mais vendidos da Flip 2019 . Em um ano menos engajado, talvez o primeiro lugar fosse outro.