Cultura

Livro dá sequência à reportagem viral sobre 'Fofão da Augusta'

Com 'Ricardo e Vânia', jornalista Chico Felitti volta à vida de personagem folclórico das ruas de São Paulo
Ricardo Correa da Silva, no Centro de São Paulo: artista de rua ficou conhecido após reportagem viral de Chico Felitti Foto: Divulgação / Agência O GLOBO
Ricardo Correa da Silva, no Centro de São Paulo: artista de rua ficou conhecido após reportagem viral de Chico Felitti Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

RIO — Visto apenas como mais um “cartão-postal humano” entre os vários habitantes de São Paulo, o artista de rua Ricardo Correa da Silva teve sua história contada numa reportagem em outubro de 2017. O Fofão da Augusta, como era chamado pelos transeuntes, deixou de ser folclore quando o repórter Chico Felitti escreveu sobre ele no site “Buzfeed”. O texto, vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo na categoria inovação, revelava o ser humano por trás do rosto deformado por aplicações de silicone e bochechas inchadas, iguais à do personagem infantil que lhe deu o apelido jocoso. A comoção na internet foi imediata.

— Minha maior realização é que ele passou a ter nome: as pessoas agora o chamam de Ricardo, e não de Fofão, apelido que ele odiava — diz Felitti.

Ricardo morreu dois meses após a publicação da reportagem; fazer qualquer coisa a mais pareceria exploração da sua figura, pensava Felitti. Mas aí surgiu um elemento novo: Vânia Munhoz, o amor da vida de Ricardo, resolveu contar a sua parte da história. Foi o que possibilitou a publicação de “Ricardo e Vânia”, extensão da reportagem que acaba de chegar às livrarias.

Aos 55 anos, Vânia mora em Paris (está há três décadas na Europa) e tem o lema da Revolução Francesa (“Liberdade, igualdade, fraternidade”) tatuado no braço. Quando ainda se chamava Vágner e morava no Brasil, ela namorou Ricardo por oito anos — e, em determinado momento, os dois chegaram a ter as mesmas intervenções no rosto. Na reportagem, era a peça que mais fazia falta no quebra-cabeças da vida do retratado.

— Vânia abriu mais portas e foi o que pesou para levar a história adiante, mas ela por si só já merecia um livro — diz Felitti. — A sua história é muito dolorosa, e ela resolveu contá-la sem autocomiseração. É um personagem muito forte, que revela coisas que a sua família no Brasil, até a publicação do livro, não sabia, como ser trans e ter se prostituído. Nunca conheci uma pessoa tão sincera.

O jornalista de Chico Felitti, autor de 'Ricardo & Vânia' Foto: Divulgação / Agência O GLOBO
O jornalista de Chico Felitti, autor de 'Ricardo & Vânia' Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

A primeira parte de “Ricardo e Vânia” reproduz na íntegra, com algumas alterações, a premiada reportagem. Em primeira pessoa, o repórter conta passo a passo a sua aproximação de Ricardo, quando ele estava internado no hospital. Diagnosticado com esquizofrenia, ele não era uma fonte muito confiável para falar de sua própria vida. E isso levou o repórter a investigar o passado de Ricardo, visitando parentes em sua cidade natal, Araraquara, e amigos que conviviam com ele na rua. Descobriu, assim, que ele havia sido um maquiador requisitado por celebridades, mas que teve a carreira interrompida por questões emocionais e de temperamento. Nos últimos anos, morava numa pensão e ganhava a vida distribuindo panfletos, entre uma internação e outra.

A segunda parte do livro é toda inédita: começa logo após a publicação da reportagem e detalha sua repercussão, incluindo tentativas de exploração da história. Felitti conta que produtores propuseram até criar um reality show com Ricardo (“A gente põe ele aqui numa casa na Vila Leopoldina”, dizia um e-mail). Em seguida, passa pela morte do personagem, os primeiros contatos com Vânia e a história de amor entre os dois.

Antes mesmo do lançamento, os direitos de “Ricardo e Vânia” já haviam sido adquiridos para o cinema pela produtora RT, de Rodrigo Teixeira. Resta saber como o filme vai retratar a figura do próprio repórter, que envolve até sua própria mãe na história. Ela fica amiga de Ricardo e ajuda na apuração.

“Ricardo e Vânia"

Autor: Chico Felitti. Editora: Todavia. Páginas: 192. Preço: R$ 54,90.

TRECHO:

"Ver Vânia pela primeira vez é como encontrar um velho conhecido. Não só pela aparência familiar que o silicone no rosto empresta, mas também pela maneira como ela sorri no meio da rua ao nos ver.

É fim do dia da última semana de abril de 2018 quando nos vemos pessoalmente, em frente ao Hôtel du Brésil, um prédio de cinco andares e escadas irregulares que ela havia nos recomendado. Fazia meses que negociávamos o encontro. Marcamos e remarcamos a viagem uma dúzia de vezes, por causa de compromissos profissionais.

(...) Só pela câmera do telefone ela podia lembrar Ricardo uns anos antes, quando ele usava cabelo comprido e maquiagem, na calçada de pedra, a dois passos de distância, ela tem uma aparência própria."