Cultura

Livro desvenda mistérios de Carlos Zéfiro, o guru brasileiro do sexo

Em "O deus da sacanagem", jornalista baiano revela enfim a identidade do autor das revistinhas clandestinas
Alcides Caminha, em 1991, logo após a revista "Playboy" ter descoberto que ele era Carlos Zéfiro Foto: Monique Cabral / Agência O Globo
Alcides Caminha, em 1991, logo após a revista "Playboy" ter descoberto que ele era Carlos Zéfiro Foto: Monique Cabral / Agência O Globo

RIO - Quem foi Carlos Zéfiro? Resumidamente: foi o autor de quadrinhos muito imaginativos mas precariamente ilustrados que fizeram a educação sexual dos brasileiros nos anos 1950 e 1960. Nas suas revistas clandestinas, que ganharam o apelido de “catecismos” (por terem o mesmo formato dos livretos usados nas igrejas para o ensino de religião), havia sempre histórias picantes que conduziam para uma quantidade alucinante de sexo — o mais livre e explícito do mercado, que mal parecia caber em tão pouco papel.

— Carlos Zéfiro tinha uma safadeza tipicamente carioca. Se Nelson Rodrigues conduzia o público até a porta da alcova, era Zéfiro quem deixava a porta escancarada — define o jornalista baiano Gonçalo Junior, autor de “O deus da sacanagem: a vida e o tempo de Carlos Zéfiro” (Editora Noir), primeira obra realmente biográfica sobre o artista dos “catecismos”.

“Quem é Carlos Zéfiro?” foi uma pergunta que muitos se fizeram ao longo dos anos 1970 e 1980, tempos em que o legado do artista foi adquirindo o status de cult , lembrado por revistas como “As aventuras de João Cavalo” e “Luíza, a insaciável”. Em 1991, o desenhista Eduardo Barbosa revelou, em entrevista ao jornal “A Notícia” ser ele o pornógrafo que passou décadas oculto pelo pseudônimo. Meses mais tarde, o jornalista Juca Kfouri anunciou nas páginas da revista “Playboy”: Zéfiro era, na verdade, o funcionário público aposentado Alcides Caminha, que vivia anônimo, cercado de filhos e netos, no bairro carioca de Anchieta.

Detalhe da página de uma revista de Carlos Zéfiro Foto: Reprodução
Detalhe da página de uma revista de Carlos Zéfiro Foto: Reprodução

Nos nove meses de vida que teve após a revelação (ele morreu em 1992), Alcides recebeu todo o reconhecimento com o qual mal poderia sonhar nos tempos da clandestinidade: foi estrela de uma Bienal de Quadrinhos e deu entrevistas para jornais e emissoras de TV. Já Eduardo, que o jovem Gonçalo entrevistou pouco depois, em 1992, em Salvador, para sua tese de conclusão de curso sobre censura ao sexo na ditadura, ficou com a fama de falsário e beberrão.

— Ele tinha uma precisão de detalhes sobre o Zéfiro que o Alcides não tinha. E, na época da revelação, o Eduardo ( que faleceu em 2006, aos 92 anos ) chegou a propor um duelo público, para desenhar quadrinhos, que o Alcides não aceitou por causa da catarata e de uma paralisia — conta Gonçalo, que só se decidiu a escrever a biografia de Zéfiro no ano passado, depois de ceder alguns de seus “catecismos” originais para a mostra “Histórias da sexualidade”, no MASP . — Comecei a fazer esse livro para tentar provar que Alcides Caminha não era Carlos Zéfiro.

Seus planos foram por água abaixo ao conversar com a irmã de Alcides, Valquíria, que nunca tinha sido entrevistada e que, aos mais de 90 anos de idade, mostrara ter uma memória invejável.

— Era improvável que Valquíria tivesse uma mente tão bem treinada para criar esse personagem em relação ao irmão. Todas as histórias dela batiam com o que pesquisei — conta Gonçalo, que encerra o livro publicando a entrevista de 1992 com Eduardo Barbosa, para dar voz ao desenhista, que foi colaborador e vizinho de Alcides. — Eduardo sabia tudo sobre o Zéfiro mas não era um falsário. Ele tentou se apropriar do personagem para ganhar dinheiro.

Das páginas de “O deus da sacanagem”, sai a figura de um Alcides Caminha de pouca escolaridade (embora gostasse muito de ler), que tentou a sorte no futebol e na música, mas que ficou conhecido entre os amigos por suas habilidades como desenhista. Jovem pai de família, ele pulava entre trabalhos até que veio a oferta para criar uma das várias revistas eróticas que circulavam nos anos 1940 — com o que recebeu pela primeira delas, comprou alvenaria e cimento para construir sua casa. E não parou mais com as revistas.

Parceiro de Nelson Cavaquinho

Segundo Gonçalo, Alcides era um desenhista medíocre com sérios problemas de representação anatômica (“Às vezes a vagina estava no umbigo”, ilustra), mas que tinha um texto excitante, contando histórias nas quais se valia de experiências próprias (ele se gabava de ter tido muitos casos extraconjugais nos tempos em que viajou pelo Brasil como datiloscopista do Ministério do Trabalho) e da vivência na boemia (Alcides escreveu letras para sambas e foi parceiro de Nelson Cavaquinho no clássico “A flor e o espinho”).

— Nas primeiras oito páginas dos seus quadrinhos, Zéfiro mostra como se leva a mulher para a cama, mas com respeito e com prazer, inclusive para a mulher. Ele não fazia nenhum juízo de moral, era libertário e confrontador — acredita Gonçalo. — Até 1984, Alcides andou no fio da navalha, ele poderia pagar um preço muito alto se fosse descoberto.

"O deus da sacanagem: a vida e o tempo de Carlos Zéfiro"

Autor: Gonçalo Junior. Editora: Noir. Páginas: 384. Preço: R$ 59,90