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Cultura

Livro recupera bastidores da criação do 'Dicionário Aurélio', com processos, brigas e acusações de traição

Por trás do sucesso editorial da obra do filólogo Aurélio Buarque de Holanda, que vendeu mais de 15 milhões de cópias, existe uma trama cheia de reviravoltas e marcada por disputas judiciais
Dicionário Aurélio vendeu mais de 15 milhões de cópias Foto: reprodução
Dicionário Aurélio vendeu mais de 15 milhões de cópias Foto: reprodução

Muito antes do “vê no Google” já existia o “vê no Aurélio”. O dicionário criado pelo filólogo Aurélio Buarque de Holanda faz parte da vida dos brasileiros desde o estrondoso lançamento de sua primeira edição, em 1975. Ainda hoje, mesmo com os sites de busca oferendo inúmeras opções para consultas lexicográficas, seu nome continua sinônimo de dicionário para muitas gerações. Mas o que poucos sabem é que, por trás da obra monumental e de suas 15 milhões de cópias vendidas, existe uma trama cheia de reviravoltas, processos judiciais, brigas e acusações de traição.

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O recém-lançado “Por trás das palavras” (Máquina de Livros), do jornalista Cezar Motta, conta exatamente o que o seu subtítulo indica: “As intrigas e disputas que marcaram a criação do Dicionário Aurélio, o maior fenômeno do mercado editorial brasileiro”. Mais do que uma biografia do dicionário, o livro traça uma biografia cruzada dos dois principais responsáveis por sua elaboração: Buarque de Holanda, morto em 1989, e seu colaborador Joaquim Campelo, que disputou com ele na Justiça a coautoria da obra.

Capa do livro "Por trás das palavras", de Cezar Motta Foto: reprodução
Capa do livro "Por trás das palavras", de Cezar Motta Foto: reprodução

A julgar pela apuração de Motta, que entrevistou Campelo (hoje com 89 anos) e diversas outras testemunhas da história, ambos os personagens foram essenciais no empreendimento. Mas cada um à sua maneira.

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— As editoras consideram o “Aurélio” o maior sucesso da história do mercado editorial. — afirma Motta, também autor de “Última página: Uma história do Jornal do Brasil” (2018). — Aurélio sempre recebeu todo o crédito por isso, e o Campelo acredita que não tem o reconhecimento devido. Tentei não tomar partido de ninguém. Depois da pesquisa, fiquei convencido que o dicionário é a cara do Aurélio, mas que Campelo também é fundamental.

Perfeição e indisciplina

“Por trás das palavras” começa contextualizando o impacto do lançamento do “Aurélio”. “Nunca um dicionário fora tão didático, tão detalhista, tão cuidadoso em suas definições e explicações”, escreve Motta. Além da qualidade gráfica, trazia novidades. Foi o primeiro a incluir em suas definições palavras como “gilete” e outros casos de marcas que viraram sinônimo do que produzem (modestamente, o “Aurélio” nunca se incluiu como sinônimo de dicionário em suas próprias páginas). Com 120 mil verbetes e 1.536 páginas, a obra seduzia os leigos por seu coloquialismo. Era rica em descrições científicas, mas sem o jargão acadêmico.

Esse dicionário prático e acessível era fruto da genialidade de Aurélio Buarque de Holanda, um lexicógrafo incomum. Sua obsessão pelas palavras vinha da puberdade em sua Alagoas natal, quando atacava os dicionários em busca de termos libidinosos. Depois, passou a garimpar expressões tanto nos clássicos quanto em publicações regionais, mas também em conversas com pessoas na rua. Hedonista, boêmio, rabelaisiano (como definiu o acadêmico Antonio Carlos Villaça), ficava até tarde nos bares trocando ideia com os garçons, e voltava para casa com os bolsos recheados de anotações para os verbetes.

A combinação de perfeccionismo e indisciplina do lexicógrafo, porém, quase inviabilizou o projeto de seu dicionário. Mesmo com uma grande equipe trabalhando para o mestre, o primeiro “Aurélio” demorou nada menos do que dez anos para ficar pronto. O grupo incluía Campelo e as também assistentes Margarida dos Anjos, Stella Moutinho, Elza Tavares e Marina Baird Ferreira (esposa de Aurélio, morta em 2015), além dos funcionários Giovani Mafra e Silva, Elisabeth Dodsworth.

Joaquim Campelo, os datilógrafos Giovana Mafra e Silva e Elisabeth Dodsworth, Margarida dos Anjos, Aurélio Buarque de Holanda e Marina Baird Foto: Arquivo Jornal do Brasil
Joaquim Campelo, os datilógrafos Giovana Mafra e Silva e Elisabeth Dodsworth, Margarida dos Anjos, Aurélio Buarque de Holanda e Marina Baird Foto: Arquivo Jornal do Brasil

— Uma das coisas que mais me surpreenderam investigando essa história foi descobrir um Aurélio preguiçoso — diz Motta. — As pessoas falam que ele era um gênio, que sabia tudo, mas que também não era muito dedicado no trabalho diário.

Enquanto Aurélio fazia tudo em seu ritmo e estourava prazos, Campelo se virava nas questões práticas. Boa parte do livro é dedicada a mostrar os esforços do assistente para convencer empresários e editoras a bancar o projeto ao longo dos anos. Os atrasos e caprichos do mestre assustavam os investidores, mas Campelo insistia. Quando finalmente a Nova Fronteira de Carlos Lacerda topou a empreitada, os royalties foram divididos entre os colaboradores. Dos 10% repassados pela editora, 7% deveriam ficar com Aurélio e 3% com os demais assistentes.

Anotações da Elza Tavares para o dicionário "Aurélio". A partir de dicionários anteriores, a equipe acrescentava signifcados, alteravam e corrigiam os verbetes já existentes Foto: reprodução
Anotações da Elza Tavares para o dicionário "Aurélio". A partir de dicionários anteriores, a equipe acrescentava signifcados, alteravam e corrigiam os verbetes já existentes Foto: reprodução

A divisão originou uma série de disputas entre Campelo e a família do mestre. Em 1981, a Nova Fronteira lançou o “Minidicionário Aurélio”, esperando vender 1 milhão de exemplares por ano. Como se tratava de um produto novo, o casal Aurélio e Marina exigiu que os colaboradores ficassem de fora dos direitos autorais. A situação se resolveu, com a editora pagando a todos, mas não por muito tempo. Ao trocar a Nova Fronteira pela Positivo (atual editora do dicionário) em 2004, Marina, já viúva, cortou novamente Campelo e os demais do novo contrato. O ex-colaborador foi à Justiça, mas perdeu em todas as instâncias, incluindo o STF.

Aos 89 anos, Campelo ainda está na ativa. Trabalha para a Editora do Senado Federal, em Brasília. Por telefone, diz ao GLOBO que ainda não leu o livro e que não guarda mágoas de Aurélio. Acredita, porém, que houve um apagamento da sua colaboração no dicionário. Ele define a obra como “uma quixotada”.

— Não é uma questão de ter mágoa ou não, os fatos estão aí, as pessoas que decidam o que achar — argumenta. — Certamente deve haver coisas no livro que podem ser contestadas, já que eu sou uma das poucas fontes vivas do autor. Tenho o maior respeito pelo Aurélio. Era um grande professor, sabia ensinar as coisas de um jeito diferente, mas também era uma pessoa inconfiável.

Aí veio a internet...

Com a concorrência de outros dicionários e a chegada da internet, a obra perdeu a força. Ainda assim, continua sendo impressa, com atualizações a cargo da lexicógrafa Renata Menezes. Chegou à quinta edição em 2010, e desde então ganhou três reimpressões. Além dele, a editora Positivo trabalha com outras quatro publicações da mesma linha: o “Mini Aurélio”, o “Aurélio júnior”, o “Aurélio ilustrado” e o “Aurelinho”. A editora não revela números, mas diz que o “Aurélio digital”, lançado em 2019 nas versões para celular e desktop, “vendeu bem”.

Para Cezar Motta, pouca gente “perde tempo abrindo dicionários” físicos hoje.

— Eu sou um dos poucos que ainda fazem isso, mas meus filhos não querem saber de dicionário de papel — conta.