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Cultura

Livro reúne relatos inéditos de viajantes ingleses no Brasil Colonial

Textos de aventureiros do passado trazem descrições de batalhas e detalhes saborosos da vida na época
Gravura holandesa com a representação de São Vicente e Santos (1624), incluída no livro "Ingleses no Brasil" Foto: Divulgação
Gravura holandesa com a representação de São Vicente e Santos (1624), incluída no livro "Ingleses no Brasil" Foto: Divulgação

RIO — De Pero Vaz de Caminha a Auguste de Saint-Hilaire, são bastante conhecidos os relatos de viajantes portugueses, espanhóis e franceses pelo Brasil Colônia. O mesmo não se pode dizer dos visitantes ingleses, cujos testemunhos sobre nosso território ainda permaneciam obscuros por aqui.

Organizado pelas pesquisadoras Sheila Hue e Vivien Kogut Lessa de Sá, “Ingleses no Brasil: Relatos de viagem” (Chão Editora) reúne 12 narrativas de diversos autores, todos inéditos no país. São miniautobiografias, cartas comerciais, diários de bordo, depoimentos orais à Justiça e cosmografias (obras “científicas” sobre regiões do planeta) que trazem um olhar diferente do que estamos acostumados nessa área.

— Como os ingleses não puseram em prática um projeto de colonização do território, mas intervieram esporadicamente seja em viagens de exploração, de comércio ou de ataque e pilhagem, os relatos são muito heterogêneos, e terminam por expor algumas cenas corriqueiras que não costumam aparecer nos de outros viajantes, como os franceses no século XVI — diz Sheila Hue, que garimpou os textos com Vivien a partir de um levantamento realizado com o apoio da Biblioteca Nacional. — Alguns destes relatos são verdadeiras narrativas de aventuras, muito cinematográficas.

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Por conta da natureza distinta das viagens, em relação às realizadas pelos espanhóis ou portugueses, é que as narrativas reunidas em “Ingleses no Brasil” tratam, sobretudo, de questões objetivas, ligadas ao comércio. Mas, em meio a listas de mercadorias e prospecções de oportunidades de negócios, há momentos vívidos, repletos de emoções e pirataria em alto mar. Como as descrições de batalhas da frota armada pelo Conde de Cumberland, que atacou Salvador e os engenhos do Recôncavo baiano durante seis semanas. Ou as peripécias do marinheiro Peter Carder, que após se perder em uma expedição chegou a conviver com indígenas e até a participar de uma guerra com eles.

Há, ainda, detalhes saborosos do cotidiano da Colônia, desde instantâneos da luxuosa vida da elite local a descrições da fauna e da flora — uma natureza ainda intocada, com paisagens reconhecíveis ainda que radicalmente alteradas. Graças às listas de mercadorias a serem transportadas ou de cargas roubadas pelos ingleses, conhecemos também produtos, iguarias e delícias gastronômicas da época. Em um documento de 1580, entre itens que deveriam ser levados de Santos a Londres, aparecem cordas para viola — uma das primeiras referências à musica europeia, não religiosa, no Brasil.

— No Rio de Janeiro, por exemplo, temos um navio atacado e saqueado por uma frota de ingleses, em 1587, apenas 22 anos após a fundação da cidade — diz Vivien, professora da Universidade de Cambridge. — Levavam a bordo muitos doces em conserva e compotas de gengibre, presentes do governador Salvador Correia de Sá para o bispo de Tucumã. E ainda obras de arte sacra, como rosários e pinturas. Tudo sequestrado pelos inimigos “luteranos”, que era como portugueses, colonos e espanhóis chamavam os ingleses.

Imagem do panfleto de Henry Roberts, representando
James Lancaster e seus homens em Pernambuco, incluída no livro "Ingleses no Brasil" Foto: Divulgação
Imagem do panfleto de Henry Roberts, representando James Lancaster e seus homens em Pernambuco, incluída no livro "Ingleses no Brasil" Foto: Divulgação

Como os autores dos textos têm diferentes formações sociais e culturais, o estilo de escrita é desigual. Os três testemunhos da empreitada do navio Minion of London, por exemplo, que em 1581 tentou estabelecer uma rota comercial direta entre Londres e Santos, se limitam a um olhar puramente técnico. Já o de Peter Carder tem um ritmo alucinante, à maneira dos contos picarescos do século XVIII. Algumas passagens parecem um tanto exageradas, e portanto não devem ser encaradas como um retrato fiel da realidade. Não por acaso, relatos como o do marinheiro teriam inspirado romances como “Robinson Crusoé”.

— Alguns dos autores são cultos, humanistas, dialogando com a literatura europeia do Renascimento; outros são duros e rudes, sincopados, vindos diretamente de um depoimento oral de alguém não escolarizado — diz Sheila, professora da Uerj.

Há pelo menos um elemento que atravessa quase todas as narrativas: o olhar negativo sobre os rivais ibéricos, com quem os ingleses travavam conflitos comerciais e religiosos. Tantos colonos quanto portugueses costumam ser descritos como mentirosos, cruéis, covardes e desastrados nas artes da guerra. Este é, aliás, um dos fatores que tornaram esses textos pouco difundidos por aqui, acreditam as pesquisadoras.

— Era uma espécie de guerra de versões — observa Vivien. — Os portugueses descreviam os ingleses como iconoclastas e cruéis, e estes descreviam os ibéricos e os europeus do Brasil de forma igualmente depreciativa. Esse olhar negativo contribuiu para que esses relatos não fossem traduzidos entre meados do século XIX e o início do XX, quando se publicaram e traduziram muitos documentos sobre o Brasil dentro de uma visão patriótica da História.

Vivien e Sheila começaram a trabalhar juntas na pesquisa sobre relatos ingleses no Brasil em 2006, quando prepararam a edição de “As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet” (Zahar), livro de memórias de um explorador inglês. Segundo elas, há ainda muitos textos de viagem inéditos em português a serem garimpados.

— Há neles diferentes visões, que nos ajudam a pensar quem somos, o que fomos e o que podemos ser — diz Sheila. —Vejamos a questão indígena nos relatos do livro. Podemos ouvir as vozes indígenas silenciadas, e vez por outra vestígios como a descrição de diferentes formas de preparar o cauim de mandioca relatadas pelo navegador Richard Hawkins, que ele achou “muito parecida com a cerveja que se toma na Inglaterra, e da mesma cor e sabor”.

Batalhas, saques, peripécias...

John Sarracoll

O mercador narra a viagem da frota armada pelo Conde de Cumberland à América do Sul, com o intuito de saquear naus ibéricas, e descreve uma batalha emocionante, que se estendeu durante seis semanas, de Salvador aos engenhos do Recôncavo baiano.

Thomas Turner

Em suas viagens pelo Brasil entre o final do século XVI e o início do XVII , o mercador inglês fornece números sobre o tráfico de africanos escravizados. Conta que 28 mil negros embarcavam todo ano de Angola. Ele também noticia uma enorme revolta em que dez mil deles formaram barricadas. Dois mil foram recapturados por índios e portugueses.

James Lancaster

Em 1594, o pirata inglês conseguiu a proeza de saquear uma vila portuária de Recife bastante habitada e fortificada (e, no caminho, ainda capturou 29 navios e fragatas). Valendo-se da superioridade do seu poder de fogo, manteve a vila dominada por 30 dias e abasteceu seus navios com mercadorias valiosas, com abundância de açúcar, pau-brasil e algodão.

Peter Carder

O veterano da viagem de circum-navegação de Francis Drake ficou nove anos no Brasil após se perder em uma expedição. Na selva, juntou-se aos indígenas e lutou em guerras com eles. Em Salvador, participou ativamente do comércio marítimo entre as capitanias. Foi preso pelos portugueses, mas conseguiu voltar para a Inglaterra, onde foi condecorado pela Rainha.