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Cultura

Livro revela inseguranças que Drummond relatou em cartas ao colega Ribeiro Couto, com quem trocou poemas inéditos

Os dois tiveram troca assídua de cartas, reunidas pela primeira vez no recém-lançado 'Correspondência: Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto'
Drummond e Ribeiro Couto: troca de cartas e poemas inéditos reunidos em livro Foto: Fotos de divulgação
Drummond e Ribeiro Couto: troca de cartas e poemas inéditos reunidos em livro Foto: Fotos de divulgação

RIO — Tudo parecia opor os poetas Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto. O itabirano Drummond era sério, introspectivo, progressista, e preocupado com temas grandiosos e com o estado das coisas. O santista Couto era sociável, de bem com a vida, interessado nas miudezas do cotidiano, e acabou se revelando um conservador na política.

Apesar das diferenças, os dois iniciaram a partir de 1925 uma troca assídua de cartas, que se manteve — com altos e baixos — até a morte de Couto, em 1963. Reunidas pela primeira vez no recém-lançado “Correspondência: Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto” (Editora Unesp), com organização de Marcelo Bortoloti, as missivas trazem novidades.

Livro "Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto: correspondência", de Marcelo Bortoloti Foto: Reprodução
Livro "Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto: correspondência", de Marcelo Bortoloti Foto: Reprodução

Primeiro, mostram um Drummond ainda em formação, inseguro, repleto de dúvidas sobre seu futuro, e expondo-se como poucas vezes se viu. Segundo, ajudam a tirar do limbo um hoje praticamente esquecido Ribeiro Couto, que após a glória precoce foi caindo pouco a pouco na obscuridade. De quebra, a epístola ainda traz poemas desconhecidos, trocados entre eles na época: só do mineiro, são sete nunca editados em livro e outros três completamente inéditos; do santista, são três — um deles até aqui nunca publicado em lugar algum.

— Entre as correspondências que influenciaram Drummond no início da carreira, a que ele manteve com Ribeiro Couto é uma das mais bem preservadas — diz o jornalista Marcelo Bortoloti, que pesquisou o material na Casa de Rui Barbosa, onde está o acervo do poeta mineiro. — Seus principais interlocutores na época eram Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Couto completou a tríade, mas as missivas ficaram esquecidas, creio que por causa do apagamento dele do cenário nacional.

A correspondência com Mário foi publicada em 2002, enquanto a com Bandeira se perdeu parcialmente (restaram apenas as cartas escritas pelo pernambucano). A ligação com Couto é pouco badalada, mas nem por isso menos essencial para a compreensão da sua vida. Quando os dois começaram a se corresponder, Drummond ainda era um recém-casado estudante de farmácia e buscava um lugar ao sol na cena literária. Com dificuldades financeiras de se manter com a esposa em Belo Horizonte, temia fracassar como poeta e ser obrigado a voltar para a sua Itabira natal.

Couto, por outro lado, vivia o pleno reconhecimento. Mesmo apenas quatro anos mais velho que seu interlocutor, já era consagrado no meio literário (entraria na Academia Brasileira de Letras em 1934). O debate literário parece ter unido os poetas em um primeiro momento, com muitas trocas sobre o modernismo e um desprezo em comum pela figura do veterano Graça Aranha (que teria, segundo os dois, sequestrado para si o protagonismo dos jovens modernistas). Couto, aliás, diz ter sido o verdadeiro nome por trás da introdução das ideias de vanguarda no Rio dos anos 1920.

As diferenças, porém, já apareciam. Em cartas a Manuel Bandeira, Couto, um “amigado com a vida”, como definia a si mesmo, zombava do temperamento soturno de Drummond pelas costas (embora também elogiasse o seu talento). Já o mineiro provocou um terremoto ao comentar em uma carta sobre o “lirismo pequeno” do amigo — expressão que o santista interpretou mal. A amizade foi salva após uma DR na missiva seguinte, mas acabou perdendo força a partir dos anos 1930, quando Couto passou a assumir uma postura conservadora radical.

— Parece uma conversão surpreendente, mas talvez as ideias mais conservadoras já estivessem na personalidade de Couto, só não de forma tão evidente — avalia Bortoloti. — Embora dialogasse com os modernistas, seus poemas nunca foram muito modernos. Inclusive Drummond não parecia gostar muito dos versos do amigo.

Drummond podia até fazer pouco caso da obra poética do seu interlocutor, mas é certo que apreciava a sua correspondência. “Couto é o brasileiro que escreve as cartas mais deliciosas”, escreveu ele em um texto no “Jornal do Brasil” em 1958. E ele estava certo. O livro, aliás, é uma oportunidade de conhecer esse missivista de mão cheia que é Couto. Suas cartas exalam uma joie de vivre que lembram às vezes crônicas doce-amargas de Rubem Braga.

Escritor-diplomata, Couto foi pulando de embaixada em embaixada no exterior. Longe do país, acabou sendo esquecido. Sem herdeiros, após a morte de sua viúva os direitos autorais caíram numa espécie de buraco negro, que dificultaram ainda mais a difusão de seus escritos. Os editores da correspondência resolveram o imbróglio negociando diretamente com um advogado que hoje representa a obra do escritor.

O fim da vida foi especialmente crepuscular para Couto, que viveu sozinho numa embaixada em Belgrado (a mulher ficara em Paris). Foi nessa época, no final da década de 50, início dos anos 60, que a correspondência com o itabirano voltou com tudo. Agora a situação havia se invertido. Já como o maior poeta do país, Drummond fazia questão de dar moral ao amigo decadente, tanto em cartas quanto em menções na imprensa.

— É uma prova do respeito entre os dois — diz Bortoloti. — São amigos retomando e relembrando uma velha amizade. Curioso que no final da vida as cartas de Couto foram ficando ainda mais joviais, parecidas até com as cartas de juventude do Drummond.

Doado à Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, o acervo de Drummond ainda tem muitos tesouros a serem explorados. Há cartas com personalidades como Abgar Renault, Gustavo Capanema e Murilo Mendes.

— Na época em que (o bibliófilo) Plínio Doyle dirigia a instituição, Drummond doou todo seu acervo e se empenhou para que outros amigos também doassem — diz Bortoloti. — A Casa de Rui tem um dos acervos mais importantes do Rio, que é sub-utilizado diante do material que existe lá. Talvez falte visibilidade, muita gente não sabe que pode pesquisar ou acha que é só um lugar onde se estuda Rui Barbosa.

“Correspondência: Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto”: Org.: Marcelo Bortoloti. Editora: Unesp. Páginas: 224. Preço : R$ 42