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Beckett além de Godot: três obras recém-lançadas cobrem quase toda a carreira do genial autor irlandês

“Mais pontas que pés”, “Disjecta” e "Vozes femininas" destacam diferenças (e desequilíbrio) entre facetas do Nobel de literatura: o ficcionista, o crítico e o dramaturgo
Samuel Beckett nos anos 1980 Foto: Reprodução
Samuel Beckett nos anos 1980 Foto: Reprodução

Para um autor que nunca se preocupou muito com o público, Samuel Beckett tem tido uma agitada vida editorial no Brasil, como sugere a publicação recente, quase simultânea, de três livros seus. Dois saem pela Biblioteca Azul: “Mais pontas que pés” traz os contos que inauguraram a ficção beckettiana em 1934, e “Disjecta” reúne ensaios, resenhas, cartas e um fragmento teatral, datados do fim dos anos 1920 ao final dos 1960. Fechando a trinca, “Vozes femininas”, da Cobogó, apresenta três peças feitas entre 1972 e 1981.

A coincidência dos lançamentos dá um panorama da obra de Beckett, no tempo como nos gêneros. O intervalo cobre quase toda sua carreira, enquanto os livros mostram suas várias faces: ficcionista, crítico, dramaturgo. Destacam-se as diferenças, mais profundas que a mera adequação para cada tipo de texto. Não fosse por algumas recorrências — como a ênfase na dimensão subjetiva da linguagem, adensada por um trabalho minucioso —, até se poderia imaginar três autores distintos.

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Em “Mais pontas que pés”, um jovem Beckett busca uma voz própria. Os contos do livro compartilham o protagonista, o intelectual Belacqua Shuah, em meio a aventuras etílicas, amorosas e matrimoniais numa Dublin provinciana.

A trivialidade do assunto se opõe ao modo de Beckett narrá-lo — se é que a distinção faz sentido. O autor usa alusões intertextuais, descrições insólitas e muita ironia para, mais do que contar a vida de Belacqua, dar a impressão de que a vivemos: na abertura do livro, por exemplo, é nossa a confusão mental dele, que adormece lendo a “Divina comédia”.

Porém, a impressão geral do livro é de desnível. O jovem escritor tinha uma erudição fora de série, bem como domínio estilístico, mas aqui isso atrapalha mais do que ajuda. Parece haver maior esforço em demonstrar virtuosidade que em valorizar os momentos humanos ali narrados, como o desencontro entre Belacqua e Lucy ao final de “Caindo fora” ou o medo da morte em “Amarelo”.

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Experimentação e ousadia

O desequilíbrio causado pela erudição já não aparece em “Disjecta”, de tom mais uniforme, todo dedicado à discussão intelectual sofisticada. É o caso, por exemplo, do ensaio célebre que compara o romance “Finnegans Wake”, de James Joyce, a Dante, Vico e Giordano Bruno, ou então da exegese longa e idiossincrática sobre a pintura de Abraham e Gerardus van Velde.

O desequilíbrio que chama a atenção, nesse caso, é entre o Beckett de “Mais pontas que pés” e o de “Disjecta”, relativamente próximos no tempo. Enquanto um tateia seu caminho, o outro já consolidou sua visão sobre a arte. Ora irônico, ora sério em seus ensaios, ele defende com firmeza a experimentação rigorosa, a ousadia formal e a radicalidade da expressão, ainda que ao custo do entendimento mais imediato do público. O artista demoraria a alcançar uma síntese criativa à altura da elaboração conceitual.

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Curiosamente, as mesmas características que faziam de Beckett um artista poderoso também o prejudicavam como crítico. Sua poética era tão bem definida que lhe faltava abertura para outras abordagens, mais ou menos distantes da sua; elas sequer lhe parecem concebíveis. O bom crítico, ainda que com um viés inevitável, precisa de elasticidade para pensar uma variedade de obras, dentro dos termos delas. Não era o caso de Beckett, focado na sua própria.

“Mais pontas que pés” e “Disjecta” talvez atraiam mesmo os leitores já adeptos, pelo que indicam sobre o processo criativo do autor. O livro de contos mostra o ponto de partida, tudo de que Beckett se livrou para se tornar quem era. O de ensaios oferece a intuição do ponto de chegada, longamente perseguido antes de alcançado.

Nas peças coligidas em “Vozes femininas”, por sua vez, já se tem o Beckett célebre. As três peças do livro são “Não eu”, “Passos” e “Cadência”, todas protagonizadas por figuras femininas, em contraste com as tantas personagens masculinas em outras obras do autor. Mas o estilo é típico dele: poucas palavras, sempre insuficientes e reiteradas; ênfase nos silêncios; indicações mínimas de ambientação. Em resumo, sua “eloquência às avessas”, como disse George Steiner.

As três peças já estão além de qualquer sinopse. Propõem antes de tudo uma experiência — incompleta no livro, visto que pensada mais para o palco do que a página, mas também eficaz. Parafraseando o Beckett do ensaio sobre “Finnegans Wake”, suas peças maduras não são sobre alguma coisa, são a própria coisa.

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Talvez a mesma coisa: o instante exato entre o fim do discurso coerente e o início do silêncio aterrador. Seja a Boca de “Não eu”, pedaço de gente a tentar lembrar uma história; seja a May de “Passos”, à mercê da voz da mãe fora de cena; seja M., a mulher de “Cadência” que balança numa cadeira ao som de uma estranha canção de ninar, todas essas protagonistas de Beckett precisam e não podem falar. É um retorno de modo concentrado ao que o autor explorava desde Godot e sua trilogia de romances. Reiterações quase idênticas, mas com desvios decisivos (por exemplo, o de gênero) — Beckett puro, portanto.

É grande a tentação de ver uma trajetória linear nos três livros agora lançados, como se fosse inevitável que o jovem tateante desse no criador maduro. Mas há fissuras no panorama. Certos livros esclarecem algumas sombras; outras são elucidadas por episódios históricos ou biográficos. Ainda assim, o salto qualitativo tem algo de estarrecedor.

Cada um à sua maneira, os três livros dizem muito desse artista genial. Mas, assim como em sua obra, o essencial talvez esteja mesmo no silêncio, e que lá continue. Quem queria desvendar o segredo de sua criação terá que seguir esperando.

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“Mais pontas que pés” Autor: Samuel Beckett. Editora: Biblioteca Azul. Tradução: Ana Helena Souza. Páginas: 236. Preço: R$ 59,90.

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“Disjecta” Autor: Samuel Beckett. Editora: Biblioteca Azul. Tradução: Fábio de Souza Andrade. Páginas: 224. Preço: R$ 59,90

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“Vozes femininas – Não Eu, Passos, Cadência” Autor: Samuel Beckett. Editora: Cobogó. Tradução: Fábio Ferreira. Páginas: 88. Preço: R$ 48

Henrique Balbi é escritor e professor de literatura, mestre em Estudos Brasileiros e doutorando em Literatura Brasileira na USP