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Best-seller da História do Brasil, Laurentino Gomes encara agora o fantasma da escravidão

Escritor lança primeiro livro de sua aguardada trilogia sobre o tema na Bienal do Rio
Marc Ferrez. Escravos na colheita de café, c. 1882. Vale do Paraíba, RJ / Acervo IMS Foto: Marc Ferrez / Acervo IMS
Marc Ferrez. Escravos na colheita de café, c. 1882. Vale do Paraíba, RJ / Acervo IMS Foto: Marc Ferrez / Acervo IMS

RIO —Depois de narrar a chegada da corte portuguesa ao Brasil, a Independência e a proclamação da República em best-sellers que venderam 2,5 milhões de exemplares (“1808”, “1822” e “1889”), Laurentino Gomes decidiu encarar de frente um “fantasma” histórico. Seu novo livro, que será lançado no próximo sábado (31), na Bienal do Rio , toca em “uma chaga aberta” definidora da estrutura social, dos costumes e das estatísticas do país. “Escravidão” (Globo Livros) consumiu seis anos de pesquisa e levou o autor a 12 países de três continentes.

— Assombrações só desaparecem quando as confrontamos, tentando entendê-las — ele diz. — Mas, em vez de resolver os problemas deixados pela escravidão, fomos construindo mitos sobre nós mesmos, como se o Brasil fosse um país de escravidão mais benévola, patriarcal. Como se fôssemos uma democracia racial. É hora de olhar a escravidão e ver que ela é responsável pelo que somos hoje. Só isso nos fará amadurecer como democracia.

LEIA TAMBÉM: 'Escravidão' é um ótimo livro, que retrata de forma nítida como o Brasil se tornou o 2º país com mais negros no mundo

Olhar para ela, no livro de Laurentino, é conhecer o horror dos navios negreiros com seus cativos doentes jogados ainda vivos ao mar para conter epidemias. É também encontrar informações econômicas sobre o maior de todos os negócios do mundo até o começo do século XIX.

Neste volume inicial, Laurentino parte do primeiro leilão de cativos em Portugal, em 1444. E segue até a morte de Zumbi de Palmares, em 1695. O próximo livro sai no ano que vem. E o último, em 2021. Hoje, o autor reconhece, a escravidão é um dos tópicos mais estudados nas universidades brasileiras. Mas o assunto, ele pondera, ainda está muito restrito ao ambiente da academia:

— Quero atingir um público mais amplo, leigo e muitas vezes refém de discussões polarizadas, gritaria sem bases.

Em “Escravidão”, Laurentino aplica mais uma vez seu método de apresentar a História, condensando pesquisa ampla em escrita fluida, não linear, que se afasta da linguagem acadêmica. É um livro de jornalista, mais do que um historiador. Segundo o próprio autor, uma “coleção de pequenos ensaios, reportagens, flashes de luz”, que dão uma “visão de conjunto” sobre a escravidão.

Laurentino Gomes lançará até 2021 três volumes de sua trilogia "Escravidão" Foto: Vilma Slomp / Divulgação
Laurentino Gomes lançará até 2021 três volumes de sua trilogia "Escravidão" Foto: Vilma Slomp / Divulgação

E o que fica desse conjunto é, antes de tudo, uma sucessão de massacres. Os números levantados dão a dimensão da tragédia humanitária. Com o extermínio de 1 milhão de indígenas a cada século, os ciclos econômicos do Brasil Colônia até o século XIX só se mantiveram com a importação de 5 milhões de cativos africanos.

O Brasil foi o maior território escravista do Ocidente por quase três séculos e meio, lembra o autor, já na introdução. Nada menos do que 47% da mão escravizada da África vieram para cá. De 188 portos, saíram 12,5 milhões de cativos rumo às Américas. Quase ninguém voltou. E pelo menos 1,8 milhão morreu na travessia. A quantidade de corpos lançados ao mar chegou a mudar as rotas de tubarões no Atlântico.

Em Angola, o cenário era apocalíptico. Em meados do século XVIII, a caça a escravizados levou a cadáveres jogados nas estradas, devorados por famintos. No Brasil, escravizados tinham membros amputados e literalmente moídos por acidentes no trabalho forçado dos canaviais.

— A escravidão começou aqui associada à indústria do açúcar. Você pega a cana, mói, tira o açúcar e joga fora o bagaço — compara Laurentino. — O Brasil tentou fazer o mesmo com sua população afrodescendente.

O próprio autor reconhece que iniciou a pesquisa ainda um tanto imbuído da “mitologia da mestiçagem brasileira”, ou seja: a versão de que a escravidão havia sido mais amena por aqui. Mas logo percebeu: nunca houve escravidão sem violência.

As nuances de personagens também surpreendem. Como o infante Dom Henrique, patrono do descobrimento, que, ao contrário da lenda, nunca navegou nem entendeu de navegação; e a rainha Jinga, que infernizou os portugueses em Angola. Já o personagem que encerra o livro, Zumbi dos Palmares, é visto como uma espécie de personalidade em construção, na qual se projetam diferentes visões da escravidão.

Não há como analisar o período, porém, sem falar em hipocrisia. Laurentino lembra que filósofos humanistas eram sócios de empresas de tráfico negreiro, e inconfidentes mineiros tinham cativos em casa. Isso sem falar da religião. Igrejas ganhavam escravos como dízimo de fiéis e os vendiam a senhores de engenho:

— Todas as ordens religiosas no Brasil foram donas de escravo. A igreja da bondade, da misericórdia não se pronunciou de forma decisiva contra a escravidão até o século XIX.

Bastidores da pesquisa

Ao chegar à Serra da Barriga, em Palmares, para as pesquisas de “Escravidão”, Laurentino Gomes se deparou com um conflito inimaginável para os nossos antepassados. Em 20 de novembro de 2017, Dia da Consciência Negra, ele viu mães de santo chegarem para celebrar Zumbi e serem recebidas de forma hostil pelas famílias evangélicas que habitam hoje aquele que foi um dos últimos redutos do antigo quilombo.

Novo livro de Laurentino Gomes investiga a escravidão Foto: Adaptação
Novo livro de Laurentino Gomes investiga a escravidão Foto: Adaptação

É para capturar contextos como esse, envolvendo passado e o presente, que o jornalista e escritor faz questão de viajar pelos lugares marcados pela história que ele estuda. Laurentino tirou um ano só para viajar: passou por 12 países (oito só na África) e percorreu diversos estados brasileiros.

— Se eu não tivesse ido a Palmares nunca teria descoberto esse tipo de informação — diz o autor, que viaja acompanhado de Carmen Gomes, sua companheira e agente literária. — É útil dar uma atualizada no assunto para o leitor de hoje.

Capa de "Escravidão", de laurentino gomes Foto: Divulgação / Agência O GLOBO
Capa de "Escravidão", de laurentino gomes Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

Laurentino colocou em prática um velho desejo: registrar os bastidores de suas pesquisas. Para isso, usou suas redes sociais. Só no Instagram, publicou 70 vídeos . O episódio mais “simbólico”, de acordo com o autor, aconteceu durante uma viagem a Gana, onde visitou os porões da Forte de Cape Coast, o principal entreposto de tráfico de escravos dos britânicos no século XVII.

— Entramos em um salão maior do que uma quadra de tênis, úmido e frio — recorda o autor. — A luz só passava por uma portinhola. Era lá que ficavam as mulheres cativas, à espera dos navios negreiros. Às vezes a espera durava meses. Muitas tinham filho, morriam. O guia sugeriu que eu ficasse sozinho no local por alguns minutos. Fechou a porta, ficou uma escuridão. Tive uma catarse e chorei muito.

Assim que saiu de lá, Carmen ligou a câmera, e ele gravou o vídeo que seria publicado no Instagram, os olhos ainda vermelhos.

— A pesquisa foi, para mim, uma experiência emocional muito forte — conta o autor.

Publicado o primeiro volume, Laurentino tem em seu computador um gigantesco copião da segunda parte trilogia para editar. O livro, que vai da corrida do ouro à chegada da corte de D. João ao Brasil, tem previsão de lançamento para 2020.

SERVIÇO: "Escravidão — Volume 1”. Autor: Laurentino Gomes. Editora: GloboLivros. Páginas: 504. Preço: R$ 49,90