Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

‘Biblioteca Nacional precisa ser cautelosa com o Google’, alerta Robert Darnton

Para ex-diretor da Biblioteca de Harvard, digitalização de acervo pela empresa pode ser positiva, mas 'diabo está nos detalhes'
Robert Darnton, ex-diretor da biblioteca de Harvard Foto: JODI HILTON/NYT / NYT
Robert Darnton, ex-diretor da biblioteca de Harvard Foto: JODI HILTON/NYT / NYT

RIO — Especialista em história dos livros e pioneiro nos estudos da publicação eletrônica, Robert Darnton conhece de perto os esforços — e armadilhas — enfrentados por bibliotecas no processo de digitalização de suas obras raras. Entre 2007 e 2015, ele foi diretor da biblioteca da Universidade de Harvard, uma das maiores do mundo, que teve seu acervo digitalizado pelo Google. Foi lá que o gigante da internet começou a criar um polêmico projeto que é acusado de criar um monopólio comercial de livros digitais, o Google Book Search, ao qual Darnton e diversas instituições se opuseram, e que acabou sendo barrado pela Suprema Corte americana.

Em entrevista ao GLOBO por telefone, o autor de livros como “Poesia e polícia” (2014) e “Censores em ação” (2016) fala sobre o futuro da preservação de livros e dá um conselho para a Biblioteca Nacional do Rio, que estuda uma parceria com o Google para digitalizar seu acervo . O crucial, diz ele, é evitar qualquer acordo que limite o uso de suas obras raras.

Qual é a sua opinião sobre uma parceria da Biblioteca Nacional com o Google?

Não conheço detalhes da parceria, mas posso falar com prazer em termos mais gerais. O slogan do Google, “Don’t be evil” ( não seja mau ), é excelente e tenho certeza de que a empresa acredita nele. Mas vale aquele ditado: quando você janta com o diabo, deve usar uma colher longa. O histórico do Google dá margem para suspeitas. Nos Estados Unidos, o Google tentou digitalizar livros para criar um monopólio comercial de acesso ao conhecimento em forma digital, o Google Book Search. Parece que há monopólios em todo lugar em que o Google existe.

O Google é diabólico?

Não é. Conheço ótimas pessoas que trabalham lá. É só a natureza do negócio deles: adquirir o máximo de dados que podem e torná-los sua propriedade. Por isso, no caso da Biblioteca Nacional, eu diria que o mais crucial é entender que o diabo está nos detalhes.

Pode dar exemplos?

O Google às vezes diz: “Vamos digitalizar seus livros, mas queremos uso exclusivo dos dados por mais de 20 anos.” Isso é o que tentaram com a Biblioteca de Lyon, na França. Desse jeito, eles cortam acesso ao conhecimento, em vez de abri-lo. Eu recomendaria aos brasileiros serem extremamente cautelosos com qualquer acordo. É claro que se o Google deixar todas essas obras livres na internet para o público geral, pode ser positivo.

Como foi a parceria de Harvard?

O Google começou a digitalizar o acervo antes de eu me tornar diretor da biblioteca. Quando assumi, continuamos a acolher bem o projeto, porque não tínhamos recursos para digitalizar milhões de livros sozinhos e torná-los disponíveis para o público. O Google originalmente criou um mecanismo de busca em que você digitava qualquer referência específica, pessoas, objetos etc., e o serviço a encontrava nos livros. Era excelente.

Até que...?

Até que o Google propôs digitalizar também os livros que ainda não estavam em domínio público. Fomos enfaticamente contra, pois não iríamos quebrar direitos autorais. Porém, o Google bateu na porta de outras universidades, como Stanford e Michigan, que aceitaram. E a empresa passou a digitalizar centenas de milhares de livros cobertos por direitos autorais e foi instantaneamente processada pela Associação dos Editores Americanos e o Sindicato dos Autores. Após um acordo, o sistema de busca se tornou uma biblioteca comercial, que se tornou o Google Book Search. Em outras palavras, toda a base de dados que o Google estava criando passou a ser disponibilizada por dinheiro. Basicamente, bibliotecas foram compradas e obrigadas a readquirir cópias digitais de seus próprios livros, a um preço determinado pelo Google. E nada disso teve consulta pública. Felizmente, a Suprema Corte barrou tudo.

O que as bibliotecas têm feito para evitar situações como esta?

Nos EUA, criamos a Digital Public of America como uma força contrária, tornando 30 milhões de livros disponíveis de graça para o mundo, inclusive o Brasil.

Qual a importância de incluir bibliotecários no processo de digitalização?

Bibliotecários são cruciais. Porque um projeto como esse tem de ser pensado corretamente. O ponto chave é o que chamamos de metadados, que são maneiras de ajudar os leitores a localizar o que procuram. O Google é muito bom em metadados de forma geral, mas pode cometer erros tremendos ( no que diz respeito a bibliotecas virtuais ). Há estudos que mostram como na catalogação o Google errou títulos e confundiu edições antigas com novas. Se você não envolve os bibliotecários, há um grande perigo de o trabalho não ser bem feito. Um estudo maravilhoso, de um autor cujo nome esqueci, fez uma lista de todos os erros do Google em processos de digitalização.

Ironicamente, teremos que “googlar” para saber.

Sim ( risos ).

O senhor é otimista ou pessimista quanto ao futuro da preservação digital?

É uma grande pergunta. Durante o confinamento na pandemia, escrevi um novo livro e precisava acessar panfletos do século XVIII. Para o meu espanto, todos eles estavam disponíveis on-line, pois haviam sido digitalizados pela Biblioteca Nacional da França e outras instituições. Alguns deles tinham até sido digitalizados pelo Google. Eu pude trabalhar de casa ainda mais efetivamente do que se tivesse viajado para Paris. Isso é o lado otimista: uma enorme quantidade de material original está facilmente acessível, tanto para pesquisadores quanto para o público geral, e não foi monopolizada pelo Google. Nisso temos que ser justos com o Google e cumprimentá-lo.

E o lado negativo?

A pressão por comercialização continua, mesmo que tenhamos parado o Google Book Search. Todas essas grandes companhias que trabalham no campo da comunicação digital estão tentando fazer o máximo de dinheiro possível e o fazem invadindo a nossa vida privada como indivíduos, leitores, consumidores e até como cidadãos.