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Clássico de autora francesa defende urgência da escrita feita por mulheres, longe da violenta 'castração' masculina

Refletindo a partir dos conceitos da psicanálise, 'O riso da Medusa', ensaio pioneiro da francesa Hélène Cixous, ganha edição brasileira da Bazar do Tempo
Em ensaio fundamental dos estudos de gênero, a escritora Hélène Cixous defende que mulheres se apoderem de seus corpos e da escrita para transgredir a lógica da dominação masculina Foto: Divulgação/Sophie Bassouls/Sygma/Corbis/18-03-1976
Em ensaio fundamental dos estudos de gênero, a escritora Hélène Cixous defende que mulheres se apoderem de seus corpos e da escrita para transgredir a lógica da dominação masculina Foto: Divulgação/Sophie Bassouls/Sygma/Corbis/18-03-1976

A primeira coisa que se precisa saber a respeito de “O riso da Medusa”, de Hélène Cixous, é que, desde seu aparecimento, em 1975, o livro tornou-se um clássico do pensamento feminista e também uma espécie de força motora para mulheres que escrevem, sejam elas ficcionistas, acadêmicas, jornalistas ou diletantes.

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O ensaio — tratado nos círculos feministas americanos como um manifesto, definição compreensível por sua força imperativa, mas que a autora não aprova de todo — parte da figura da Medusa para tratar da ausência dos discursos femininos no espaço público (incluindo na literatura e na produção acadêmica) e da urgência de que as mulheres ocupem esses espaços com suas palavras e seus corpos.

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Hélène Cixous não é a primeira autora nem a única a se assombrar com a ausência ou a pouca presença da escrita de mulheres nos cânones ocidentais. Virginia Woolf tratou das bases materiais necessárias para a produção artística e intelectual feminina no célebre “Um teto todo seu”, de 1929, e dos preconceitos e obstáculos imateriais em “Profissões para mulheres”, de 1931. A socióloga marroquina Fatima Mernissi abordou com bom humor o sexismo dos pensadores ocidentais em “Scheherazade goes West: different cultures, different harems”, infelizmente ainda não traduzido para o português do Brasil. E estes são apenas dois exemplos em uma longa lista.

fora da dominação masculina

Mas Cixous trata a escrita feminina trazendo para o centro de sua reflexão conceitos da psicanálise. Se o sintoma pode se manifestar no corpo, como teorizou Freud , é preciso que as mulheres escrevam com seus corpos, ou seja, com tudo o que está inscrito neles. Mas este corpo feminino não pode mais ser aquele que é apenas objeto da fantasia masculina, um corpo para o outro. É, sim, um corpo que rompe com as ideias de inveja do pênis e de castração para falar e escrever de modo libertário, rebelde e subversivo — como, aliás, é o gozo feminino: fora do controle da dominação masculina.

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Por isso, Cixous dá o título a Medusa, a figura mítica de formas femininas cujos cabelos são substituídos por serpentes na arte falocêntrica. Decapitar a Medusa, como fez Perseu, é silenciá-la, tirar-lhe suas línguas, sua presença e seus desejos. É controlar seus impulsos e uniformizar sua sexualidade, tirar-lhe sua imaginação e imensa capacidade inventiva.

Pensamento. Em ensaio fundamental dos estudos de gênero, a escritora Hélène Cixous defende que mulheres se apoderem de seus corpos e da escrita para transgredir a lógica da dominação masculina Foto: Divulgação/Sophie Bassouls/Sygma/Corbis/18-03-1976
Pensamento. Em ensaio fundamental dos estudos de gênero, a escritora Hélène Cixous defende que mulheres se apoderem de seus corpos e da escrita para transgredir a lógica da dominação masculina Foto: Divulgação/Sophie Bassouls/Sygma/Corbis/18-03-1976

Ao estabelecer a escrita como possibilidade de mudança e lugar de subversão, “O riso da Medusa” constrói diálogos diversos no Brasil, 47 anos depois de sua publicação na França. Dialoga com o feminismo decolonial em sua tarefa de desconstrução dos discursos e dos sentidos patriarcais; com a “escrevivência” de Conceição Evaristo, a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças e da experiência de vida; e com os estudos sobre a perspectiva de gênero na literatura e no jornalismo. “É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal”, sentencia Cixous.

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Não é à toa que psicanalistas, juízas e jornalistas feministas insistem que as histórias de mulheres, sobretudo as sobreviventes das diversas formas de violência cometidas contra corpos femininos, sejam contadas com perspectiva de gênero, ou seja, escritas por autoras que não reproduzam as representações feitas pela escrita masculina. A experiência inscrita no corpo feminino é desconhecida aos homens , cujas narrativas raramente dão conta da complexidade e das diferenças do ser mulher e, aqui, Cixous constrói mais um diálogo contemporâneo, com a ideia de frantumaglia, que a autora italiana Elena Ferrante afirma ter herdado de sua mãe e ser fundamental para a sua literatura: “a verdadeira e única interioridade do eu.”

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Vale destacar a edição cuidadosa realizada pela Bazar do Tempo, que além do prefácio de Frédéric Regard, inclui pósfacio da pesquisadora Flavia Trocoli, bibliografia de Hélène Cixous e, sobretudo, um cuidadoso trabalho de tradução feito por Natália Guerellus e Raísa França Bastos. As tradutoras seguiram a ousadia de Cixous, que nos livro cria neologismos para tratar da escrita feminina, quase todos eles traduzidos para o português do Brasil também na forma de neologismos.

Nascida na Argélia sob domínio colonial francês, Hélène Cixous participou da criação da Universidade de Vincennes/Paris 8, ao lado do amigo Jacques Derrida, onde fundou, em 1974, o pioneiro Centre d’Études Feminines, hoje chamado de Centro de Estudos Femininos e de Estudos de Gênero. Nesta segunda, a partir das 11h, ela participará da live “A mulher, o corpo e a escrita”, no canal da editora Bazar do Tempo, no YouTube , ao lado da doutora em Filosofia Carla Rodrigues e da doutora em Teoria e História Literária Flavia Trocoli, com mediação da editora Ana Cecilia Impellizieri Martins. Tanto o livro quanto o debate são dois valiosos encontros com a escrita de Cixous.

“O riso da Medusa”. Autora: Hélène Cixous. Tradução: Natália Guerellus e Raísa França Bastos. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: 109. Preço: R$ 58. Cotação: Ótimo.