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Como os manuscritos de Kafka viraram uma batalha legal entre Israel e herdeiros de Max Brod

Em livro, o jornalista Benjamin Balint dá dimensão humana e filosófica à disputa e mostra que o próprio autor tcheco recusava qualquer ideia de pertencimento
Legado do escritor Franz Kafka é alvo de uma briga judicial que se arrasta há décadas Foto: Reprodução
Legado do escritor Franz Kafka é alvo de uma briga judicial que se arrasta há décadas Foto: Reprodução

A saga real dos manuscritos de Kafka é tão complexa que muitas vezes já se disse que ela poderia ter saído de uma ficção kafkiana. E o jornalista e escritor americano-israelense Benjamin Balint relembra isso no título de seu “O último processo de Kafka”, que faz alusão a uma das obras mais famosas do escritor tcheco de língua alemã. Recém-lançada no Brasil pela Arquipélago Editorial, a publicação investiga a batalha internacional pela propriedade dos originais deixados pelo autor. De um lado, o Estado de Israel, onde Kafka sonhou viver (mas nunca pôs os pés, já que morreu antes de sua criação). Do outro, os herdeiros de Max Brod (responsável não apenas por salvar os escritos de Kafka da destruição, como também por transformá-los no que são hoje), que tentaram vender o espólio para a Alemanha. O caso se arrastou por quase 10 anos na justiça , com a Suprema Corte israelense decidindo em favor da Biblioteca Nacional de Israel apenas em 2016.

A briga foi obsessivamente acompanhada pela imprensa, mas o mérito de Balint é dar a uma dimensão humana e filosófica a ela. Repórter e ensaísta, colaborador de veículos como “Wall Street Journal”, “New Yorker” e o israelense “Haaretz”, ele mostra que a questão vai muito além dos tribunais. Se as disputas em torno dos originais ainda provocam tanto fascínio, lembra ele, é porque tocam em três pontos sensíveis da nossa contemporaneidade: identidade, propriedade e pertencimento.

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Balint não toma partido de ninguém em sua apuração — e não apenas por objetividade jornalística. Como o leitor entenderá já nos primeiros capítulos do livro, são tantos pontos sem nó nessa história que fica impossível determinar um destino justo para o espólio de Kafka.

— O legado dele poderia ter ido para qualquer lugar do mapa — diz Balint, por e-mail. — Certa vez, uma poeta de Tel Aviv me falou: “Se dependesse de mim, os manuscritos de Kafka seriam mandados à Lua”. Kafka pode estar enterrado há muito tempo, e as comoções dos tribunais já acalmadas, mas essas questões ainda permanecem conosco.

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A história da polêmica é conhecida. Ela começa na morte de Kafka, em 1924, em uma relativa obscuridade. Ele havia orientado Max Brod, seu testamenteiro e melhor amigo, a queimar todos os seus escritos, a imensa maioria ainda não publicada. Brod, porém, traiu o desejo final do amigo para se tornar o “curador póstumo de uma celebridade”, como define Balint. Ele construiu a fama do autor não apenas promovendo sua obra, como também criando o seu mito — a ideia de um homem depressivo e antissocial que, segundo novos estudos, não corresponde à realidade. O testamenteiro ainda interferiu diretamente nos escritos, ficando assim quase impossível separar Kafka de Brod.

— Na medida em que a reputação de Kafka repousa em textos que ele não completou nem aprovou, o autor que conhecemos hoje é uma criação de Brod. Na verdade, a sua criação mais elevada e duradoura — explica Balint.

A segunda parte do imbróglio se dá na morte de Brod, em 1968. Militante sionista, ele havia fugido para a então Palestina Britânica na Segunda Guerra. Os manuscritos ficaram com sua secretária, Esther Hoffe, e depois com a filha dela, Eva, que vendeu alguns itens por US$ 2 milhões e tentou negociar o restante do espólio com um arquivo alemão. O governo de Israel a impediu baseando-se principalmente no testamento de Brod, que desejava vê-los naquele país ou “em qualquer outra instituição”. Uma ambiguidade que reforça ainda mais as duas perguntas que dominam o livro: a quem pertence a alma e a memória de Kafka? Um Estado pode reivindicar a tutela de uma obra de arte?

— Uma das ironias desse processo foi ter revelado a possessividade sobre o legado artístico do menos possessivo dos homens — pontua Balint. — Kafka escreve em seu diário sobre seu “desejo infinito de independência e liberdade em todas as coisas”. Ele desvencilhou a si mesmo e a sua escrita das âncoras reconfortantes do pertencimento nacional ou religioso. Imagino, portanto, que hoje Kafka se divertiria ao ver o espetáculo daqueles que queriam fazer dele um instrumento de prestígio nacional.

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Balint traça um fascinante perfil de Eva Hoffe, que costuma ser reduzida pela imprensa à “viúva do fantasma de Kafka”, uma idosa excêntrica e oportunista que tentaria lucrar em cima do patrimônio cultural. Durante décadas, ela viveu com a mãe e a irmã trancadas em um exíguo apartamento, onde guardavam, supostamente de forma caótica e relapsa, o tesouro literário. A única testemunha que conseguiu entrar lá conta que o local era tomado por mofo e barata e que seus inúmeros gatos andavam por cima dos documentos.

Para Eva, os museus só queriam o material na esperança de encontrar inéditos bombásticos — o que, até agora, não aconteceu. A Biblioteca Nacional de Israel começou a revelar parte do baú em 2019, divulgando cartas, diários e desenhos.

Balint reconstrói ainda a saga tumultuada desses originais, que só não caíram nas mãos dos nazistas porque Brod conseguiu milagrosamente fugir da Tchecoslováquia carregando o legado kafkiano em uma mala. O jornalista também aborda o debate sobre as ambivalentes relações de Kafka com o judaísmo (faz sentido vê-lo como um “autor judeu”?) e analisa o lugar de sua obra no entre guerras, (sete membros de sua família foram mortos no Holocausto).

— As interpretações muitas vezes contraditórias da literatura de Kafka são autointerpretações ocultas — diz Balint. — Acho que Kafka, e, por extensão, a batalha por seu legado, revela nossos próprios problemas, nos confrontando a um mundo sem Deus e onde, apesar de tudo, nossa salvação está em jogo.

"O último  processo  de Kafka” . Autor: Benjamin Balint. Editora : Arquipélago Editorial. Tradução Rodrigo Breunig. Páginas : 272. Preço : R$ 64,90