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Confinados, imortais da ABL sentem saudade do chá das quintas-feiras e fazem lives com a ajuda dos netos

Com a Academia fechada na pandemia, acadêmicos vivem 'nova alfabetização' ao desvendar mundo digital
O poeta Geraldinho Carneiro confinado em sua casa no Jardim Botânico: solitário chá das 17h e fardão pendurado Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O poeta Geraldinho Carneiro confinado em sua casa no Jardim Botânico: solitário chá das 17h e fardão pendurado Foto: Leo Martins / Agência O Globo

No discurso inaugural na Academia Brasileira de Letras, em 1897, Machado de Assis apontou o fundamento que deveria nortear o futuro da instituição: a unidade e convivência fraterna entre seus membros.

A pandemia deu um duro golpe neste propósito. Desde 13 de março do ano passado, quando fechou pela primeira em seus 123 anos de história , a casa de Machado de Assis se viu esvaziada, com os seus acadêmicos — a maior parte deles no chamado grupo de risco do vírus — impedidos de confraternizar de forma presencial. Isolados em suas casas, com o fardão cuidadosamente mantido no guarda-roupa, nem por isso deixaram de ser “imortais”. Nos últimos meses, continuaram trabalhando em seus livros e a trocar ideias via telefone e e-mail. Boa parte deles também venceu os abismos geracionais da tecnologia, aderindo a eventos virtuais da instituição, como lives e podcasts.

— O sentimento intelectual do acadêmico costuma começar já no chá — diz a escritora Nélida Piñon , de 83 anos, em referência ao famoso “chá das quintas-feiras”, que reúne semanalmente os membros da Academia para assuntos diversos.

Na pandemia, a escritora Nélida Piñon trabalha em um novo livro de ensaios Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Na pandemia, a escritora Nélida Piñon trabalha em um novo livro de ensaios Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Enquanto aguarda a segunda dose da vacina, a ocupante da cadeira 30 revisa os originais de um novo livro de ensaios e participa de lives e conferências virtuais:

— Agora, nossas casas são os nossos continentes. Mas, mesmo separados, não paramos de produzir. Porque, para nós, o ato de pensar é contínuo.

Entre os acadêmicos, o fim dos encontros semanais abriu uma grande lacuna. Para muitos, como Zuenir Ventura, de 89 anos, o convescote representava seu principal programa cultural na era pré-coronavírus. Uma reunião via teleconferência chegou a ser cogitada, mas o projeto foi abortado diante das dificuldades de alguns com a ferramenta.

— As pessoas de fora da Academia não sabem que esses nossos encontros eram a maior diversão. O que mais sinto falta é dos papos com os colegas — diz o poeta Geraldo Carneiro , de 68 anos.

O ocupante da cadeira 24 tem amenizado a saudade lendo as obras de seus pares — e escrevendo sobre eles. Atualmente, está entretido com livros de Antonio Carlos Secchin e Nélida Piñon. E trabalha em um roteiro para uma série sobre o imortal Sergio Paulo Rouanet.

Conteúdo nas redes

A falta de reuniões e palestras presenciais também resultou no corte da remuneração dos acadêmicos, que recebem pelas sessões. Mesmo sem cachê, eles têm mantido a Casa de Machado de Assis ativa, participando de uma série de conteúdos virtuais produzidos pela ABL e disponíveis no canal www.youtube.com/user/abletrasabl.

— É uma forma de resistência mental em um momento sombrio — diz Antonio Torres, de 80 anos, que está organizando uma série de podcasts com os colegas.

Ele aproveitou a quarentena em sua casa em Itaipava para estreitar laços via internet com as outras academias literárias das quais é membro, no Brasil e no exterior.

Todavia, a migração para o on-line não é fácil para todos. Domício Proença Filho , de 85 anos, até inventou um termo para definir a falta de traquejo com o digital: “analfabyte”. Os funcionários da Academia ajudam em questões logísticas, e volta e meia recebem áudios mudos, sem nada gravado. Os parentes mais jovens dos imortais também dão uma força. Zuenir tem a sorte de morar no mesmo prédio de Mauro Ventura, seu filho, que o ajuda nas gravações.

— Sou chamado de “analógico” como se fosse ofensa — brinca o jornalista. — Para nós, está sendo uma nova alfabetização.

Domício costuma apelar para uma “especialista”: a neta. Mesmo com ajuda, levou quatro horas para produzir um vídeo de 15 minutos no celular.

— Ela ficou me orientando, do alto de seus 8 anos — conta o acadêmico. — Comecei bem, mas faltando um minuto para terminar a fala, ela larga o celular: “Vovô, estou cansada.” Tivemos que começar tudo de novo.

Antonio Carlos Secchin: caminhadas no calçadão para ocupar a mente durante a pandemia Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Antonio Carlos Secchin: caminhadas no calçadão para ocupar a mente durante a pandemia Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Muito ativo na internet, o acadêmico Antonio Carlos Secchin , por outro lado, chegou a participar de 40 lives desde o início da pandemia. Depois do início frenético, passou a dar um tempo e filtrar melhor as suas participações. Para arejar as ideias no confinamento, caminha pelo calçadão do bairro de Copacabana, onde mora.

—  Pelo tempo de decorrido, acaba sobrevindo da pandemia uma certa sensação de letargia, de marasmo — diz Secchin. — Em caráter pessoal, porém, fiquei atento a não perder os vínculos com os confrades, através de emails e telefonemas.

O fardão, é claro, não saiu do armário desde o primeiro dia de quarentena:

—  Não o vestiria aqui em casa, porque na pandemia uso chinelos. E fardão com chinelos é uma antítese viva.

Sem previsão de volta

Moradora de uma casa no alto da Gávea onde a internet chega mal, Rosiska Darcy , de 76 anos, vive com medo de perder a conexão — e até de faltar luz — em meio a uma live. “Condenada à vida on-line”, como definiu a sua rotina, lançou até livro virtualmente.

— É desestimulante falar para uma câmera, sem plateia. Falta emoção — diz a ocupante da cadeira 10, que também sofre com a “difícil separação” de seus colegas. — Na ABL, estamos juntos para o resto da vida. O coronavírus nos separou não apenas dos nossos familiares de sangue, como também da nossa família da Academia.

Rosiska Darcy: trabalho e gravações no jardim Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Rosiska Darcy: trabalho e gravações no jardim Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Desde o fechamento em 2020, o elenco da ABL teve dois óbitos, nenhum deles relacionados ao coronavírus: Affonso Arinos de Mello Franco , no dia 15 de março daquele ano; e Murilo Melo Filho , em 27 de maio. Mesmo protegidos em suas casas, os acadêmicos não estão indiferentes à difícil situação do país. Tanto que a instituição tem multiplicado ações solidárias neste período , como doações de livros.

— Só voltaremos com absoluta segurança para todos os acadêmicos e funcionários, porque não há distinção entre “mortais” e “imortais” — diz o presidente da ABL, Marco Lucchesi, de 57 anos. — É preciso que todos estejam vacinados e que as garantias minimamente razoáveis da vida humana estejam plenificadas. Antes do primeiro semestre, não há condições de volta. Seria uma ficção perigosa.