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Crítica: em último livro, Stefan Zweig usa o xadrez para discutir desumanização pelo nazifascimo

Em 'O livro do xadrez', autor austríaco morto no Brasil em 1942, mostra seu desencantamento com o mundo
Jogo de xadrez no jardim da casa Stefan Zweig,em Petrópolis Foto: Bárbara Lopes
Jogo de xadrez no jardim da casa Stefan Zweig,em Petrópolis Foto: Bárbara Lopes

O suicídio do escritor austríaco Stefan Zweig durante o carnaval de 1942 pouco acrescenta à fortuna crítica de sua extensa obra. Seus últimos dias na casa de Petrópolis, porém, deixaram o testamento de um homem que tudo viu. Da queda dos Habsburgo à Primeira Grande Guerra , Zweig viu nascer um novo mundo, no instante em que suas ilusões de uma Europa integrada e pacífica morreram, com a ascensão de Hitler ao poder. De origem judaica, o autor converteu-se ao nomadismo, tendo escolhido viver no país pelo qual nutriu grande afeto, desde sua primeira viagem em 1936.

Desconfia-se que Zweig estava triste não por ter descoberto o erro que cometera, ao sugerir o epíteto “o país do futuro” para o Brasil, como diz o título de seu famoso livro, de 1941. À literatura, tampouco interessa a tristeza do escritor. Mais importante é seu olhar desencantado, translúcido em sua última novela, “ O livro do xadrez ” (1942), recém-lançada pela editora Fósforo.

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A bordo de um navio que zarparia dos Estados Unidos para a Argentina, o narrador é surpreendido pela presença de Mirko Czentovic, enxadrista campeão mundial. Pessoa tão ilustre logo chamaria a atenção dos demais passageiros. Enquanto vencia todas as partidas, Czentovic descobre haver, na embarcação, um possível oponente, identificado como dr. B. Até o embate final, Zweig demonstra amplo domínio da narrativa breve, dispondo de todos os instrumentos necessários à boa ficção. Nas 88 páginas do livro, pode-se identificar dois movimentos digressivos, fundamentais à delimitação dos personagens.

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O primeiro tem caráter formativo, e nos conta os primeiros anos de vida de Czentovic. Nascido em uma aldeia, o garoto surpreendera os habitantes ao mostrar habilidade incomum para o xadrez. Afinal, Czentovic se distinguia pela falta de inteligência: não articulava frases ou reações, transmitia certo niilismo para tudo e para todos. A caracterização de personagem tão desinteressante confere o interesse em um livro que, no título, prevê abordar um esporte cerebral. Com uma jogada de mestre, Zweig discute a natureza do xadrez, apontando para um terceiro lugar, que não o mundo exclusivamente esportivo ou intelectual.

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Durante a viagem, o narrador e McCnnor, outro passageiro, tentam vencer Czentovic por diversas vezes. A profunda ironia de Zweig, essencial ao desenvolvimento da trama, imprime certa comicidade às tentativas dos diletantes frente ao campeão mundial. Em relação ao autor, a persistência na impossibilidade denota sua profunda consciência da vida em desencanto. Não à toa, dr. B nos é apresentado por “anjo” e, em seguida, “salvador”, quando oferece ajuda aos amadores, soprando as estratégias. Sua voz é a de um tenor que canta da coxia, enquanto Zweig sustenta a intensidade da narrativa.

Na segunda digressão, dr. B revela ter sido perseguido pela Gestapo. Sua família de advogados defendia os interesses da cúria, em territórios já anexados por Hitler. Tentando obter alguma informação sobre a fortuna escondida nos mosteiros, a SS prendeu dr. B, deixando-o sozinho em um quarto por quatro meses. “Não nos fizeram nada – só nos deixaram num completo vazio, pois é sabido que não existe nada no mundo que cause tanta pressão na alma humana como o nada”, diz dr. B, comemorando o fato de não ter sido enviado a um campo de concentração.

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Ironicamente, o clímax de “O livro do xadrez” não se faz no embate entre Czentovic e dr. B, mas no relato, em primeira pessoa, de como este último jogava xadrez sozinho, num processo de desumanização. “Devido a essa situação horrível, fui obrigado a pelo menos tentar essa divisão — um eu de peças pretas e outro de peças brancas — a fim de não ser esmagado pelo pavoroso nada ao meu redor”. Era a única vez que Zweig falava diretamente sobre o nazismo. O último riso de uma vida infeliz.

Gustavo Zeitel é jornalista

“O livro do xadrez”

Autor: Stefan Zweig. Tradução: Silvia Bittencourt. Editora: Fósforo. Páginas: 88. Preço: R$ 49,90.