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'Dez dias num hospício' reúne reportagens de 1887 em que americana revelou maus tratos em sanatório para mulheres

Pioneira do jornalismo investigativo, Nellie Blyse fingiu insanidade para ser internada em sanatório de NY
Cena de "Fuga do Hospício: A História de Nellie Bly" Foto: Divulgação
Cena de "Fuga do Hospício: A História de Nellie Bly" Foto: Divulgação

Em 1887, a jornalista americana Nellie Bly (1864-1922), pseudônimo de Elizabeth Jane Cochran, se internou no Hospício de Alienados de Blackwell’s Island, que abrigava somente mulheres, para redigir uma série de reportagens sobre a vida dentro de uma das instituições públicas mais mal-afamadas dos Estados Unidos. As reportagens foram publicadas no jornal New York World, do editor e jornalista Joseph Pulitzer, cujo sobrenome batiza o famoso prêmio. Essa investigação lhe rendeu fama, uma posição sólida como jornalista investigativa, da qual foi uma das pioneiras, e o livro “Dez dias num hospício”, que agora ganha nova edição pela Fósforo, com prefácio de Patrícia Campos Mello.

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Campos Mello destaca alguns aspectos biográficos curiosos, entre eles o de como Bly chamou a atenção dos editores do Pittsburgh Dispatch pela primeira vez, depois de enviar uma carta contundente ao jornal, com o nom de plume Órfã Solitária (as mulheres costumavam assinar seus textos com apelidos), em resposta a um colunista que afirmava que meninas deveriam ser “exímias na cozinha, na costura e na limpeza da casa [...]”. Depois dessa carta, Bly foi contratada, mas para cobrir assuntos femininos “como jardinagem, moda e sociedade”. Essa parece ter sido a sina das mulheres nas mídias americanas por um bom tempo. Vale lembrar que Betty Friedan, antes de se tornar a feminista que se conhece, escrevia sobre os mesmos temas nas revistas em que trabalhou.

Nos anos 1950, diz Friedan, “os editores simplesmente acreditavam, e os redatores consideravam um fato imutável da vida, que mulheres não se interessavam por política, pela vida fora dos Estados Unidos”. Esse decididamente não era o caso de Bly, que largou o emprego em Pittsburgh e foi para o México, governado pelo ditador Porfirio Díaz, onde permaneceu por seis meses como correspondente internacional. Os leitores acreditavam que as matérias, intituladas “Nellie in Mexico”, eram escritas por um homem.

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De volta aos EUA, Bly tentou uma posição no New York World, que “estava recrutando um repórter para fazer uma viagem de balão entre Nova York e St. Louis”, mas acharam o trabalho perigoso para uma mulher. Em nova tentativa, Bly propôs ao jornal voltar da Europa de navio para “retratar a realidade dos imigrantes” que chegavam ao país, como lembra Campos Mello. Os editores não aceitaram, porém propuseram que ela fingisse ser louca para ter acesso ao Hospício de Alienados de Blackwell’s Island. Interessante pensar que a viagem de balão era considerada perigosa para uma mulher, mas não uma estada em um sanatório conhecido por destratar suas pacientes.

Nos textos, Bly não só denuncia os maus-tratos sofridos pelas internadas, como também acaba falando indiretamente dos imigrantes que chegavam aos EUA. Isso porque há muitas menções a estrangeiras que mal falavam inglês e iam parar no sanatório sem saber a razão e sem conseguir se comunicar com ninguém: “Uma moça bonita falava tão mal inglês que só consegui registrar sua história pelo que ouvi das enfermeiras”, as quais conheciam a história por boatos, escreve ela. Em outra ocasião, a jornalista fala de uma talentosa pianista polonesa que lia as partituras mais difíceis sem esforço e cuja forma de tocar era perfeita. Bly também se dizia cubana e falava uma e outra palavra em espanhol. De fato, parece que Blackwell’s Island abria suas portas para aqueles que não se encaixavam nos padrões americanos, entre eles, obviamente, os estrangeiros.

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Bly descreve o hospício como um lugar de despejo de seres humanos, com os quais não se deveria ter gastos. Se as pacientes reclamavam, eram surradas ou iam para banhos gelados que as deixavam mais doentes. Sua denúncia ajudou a mudar o comportamento dos empregados da instituição, mas sanatórios para mulheres que não se encaixavam no conceito de “feminino” seguiram fazendo vítimas até pelo menos meados do século XX.

Em 1963, uma história semelhante à de Bly foi contada por Samuel Fuller no filme “Paixões que alucinam”. Nele, um jornalista ambicioso engana os médicos de um sanatório para se internar e fazer uma reportagem investigativa. Seu objetivo era ganhar o Prêmio Pulitzer. Na ficção, os homens seguiam sendo os heróis. Somente nos anos 2000 o livro de Bly e a sua história foram adaptados para o cinema: “Dez dias em um hospício”, de 2015, e “Fuga do hospício: a história de Nellie Bly”, de 2019, com Christina Ricci.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Ascensão: contos dramáticos”