RIO — Quem frequenta sabe bem: há coisas que só acontecem em livraria. Se é verdade que a pandemia aumentou a força do varejo on-line na indústria do livro (segundo Marcos Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, as compras na internet já representariam 60% ), não se pode negar que nada substitui as lojas físicas. Livrarias como a tradicional Timbre, na Gávea, que fecha as portas amanhã , ou sebos criam laços com seus frequentadores, virando repositórios de histórias de amor, amizade e encontros transformadores.
Livraria Timbre: Entre tertúlias, escritores de passagem e leitores fiéis, por Eric Nepomuceno
Pedacinho de humanidade
São espaços afetivos e também refúgios, como experienciou a historiadora Kelly San, 30 anos. Moradora da Maré, numa ida até a Blooks, que fica em Botafogo, sofreu uma ofensa racista no ônibus.
— Uma passageira me disse para alisar os cabelos, pois eles denunciavam “um pé na África”.
Kelly desceu do ônibus sentindo dores no corpo e na cabeça. Entrou em silêncio na galeria que abriga a livraria. Mal conseguia respirar. Mas foi só chegar à Blooks, no meio dos livros de que gostava, que tudo mudou.
— Eu me cobri de acolhimento, de afeto, de esperança — conta. — Fiquei vendo os livros, e ninguém falou que eu estava errada, que não podia mexer. Naquele mesmo dia eu deveria ir à Praia Vermelha, onde estudava, e, não fosse esse processo de cura, não teria conseguido. Continuo indo à Blooks para comprar os livros do meu mestrado, e segue um lugar fundamental, um pedacinho de humanidade.
Família que te acolhe
O Beco das Letras, na Cruz Vermelha, ajudou a professora universitária Maria Auxiliadora Machado a lidar com as feridas de um luto. Após a perda do marido, ela passou a frequentar os saraus de poesia do espaço e a se expressar no microfone aberto. Até que, num belo dia, passou de leitora de poesias a leitora de suas próprias poesias. A professora voltou a escrever depois de anos. Agora, prepara dois livros.
— Retomar a escrita foi libertador, emancipatório, e só aconteceu graças àquele ambiente gostoso, àquele aconchego — diz. — Livrarias são famílias que te acolhem.
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Academia Berinjela de Letras
Não faz muito tempo, o poeta Carlito Azevedo não usava celular (até hoje usa pouco) e quem queria encontrá-lo tinha que ligar para o sebo Berinjela, no Centro, onde é habitué. É o que conta a lenda (ou melhor, seus amigos). Mas a Academia Berinjela de Letras, como ele apelidou, ainda é um grande ponto de encontros. Um deles mudou a história da literatura brasileira. Lá pelo fim dos anos 1990, Carlito e o escritor e tradutor Rubens Figueiredo fuxicavam as estantes do lugar até que seus olhos bateram num livro em russo. Carlito puxou só de curiosidade, mas Rubens traduziu o título ali na hora.
— Eu, que nem imaginava que ele sabia russo, fiquei espantado — recorda Carlito. — Falei logo que ele tinha que traduzir um ensaio do poeta Ossip Mandelstan para a revista de poesia que eu editava na época. Ele disse que o russo dele estava enferrujado, que não tinha certeza se poderia, mas topou. E aquilo o entusiasmou tanto que o fez retomar a sério seus estudos do idioma. Hoje, é um dos mais importantes tradutores daquela literatura, incluindo clássicos como “Guerra e paz”.
![Travessa de Ipanema: a agente literária Marianna Teixeira Soares com a editora Lu Thomé, na noite em que ela decidiu criar a agência MTS Foto: Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24861700-9a2-350/FT1086A/Photo-19-09-11-21-13-49.jpg)
O lugar dos escritores
Outra livraria com inegável fama de aglutinadora é a Travessa de Ipanema. Fundadora da tradicional Agência Riff, a agente literária Lucia Riff a define como um mini“agents center”, tal a quantidade de pessoas do mundo dos livros que a frequenta. Por isso mesmo, ela e outros agentes gostam de marcar suas reuniões no local. No caso de Marianna Teixeira Soares, esse clima de confraternização literária mudou sua carreira. Em 2011, ela foi a um lançamento na Travessa e, trocando ideias com a escritora Lu Thomé, motivou-se a criar a própria agência de escritores, a MTS, que hoje representa diversos autores brasileiros .
— A Travessa é o lugar dos escritores, e não à toa foi o marco zero da minha agência — diz Marianna.
Prateleira personalizada
Para quem as frequenta todos os dias, livrarias podem virar uma segunda casa, um segundo escritório e, até, uma segunda creche para os filhos. Entre 2002 e 2004, o escritor e professor de literatura Juva Batella costumava levar sua filha Alice todos os dias na Argumento do Leblon. Enquanto ficava lendo e tomando café, ela brincava com as atendentes. Juva gostava tanto da livraria que também passou a organizar todos os lançamentos dos seus livros (foram 30 no total) e todos os aniversários no café local, o Severino.
— Para o meu aniversário eles esvaziavam uma fileira e botavam uma plaquinha com o meu nome e com todos os livros que eu queria ganhar — diz o escritor.
![O casal Carlos Arthur Ortenblad Jr. e Wograine Evelyn Faria Dias: romance iniciado na Timbre Foto: Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24861704-cc9-c43/FT1086A/PHOTO-2021-01-28-11-24-38.jpg)
Amor romântico
O ambiente fraterno e a paixão em comum pelos livros possibilitam essas confluências. Carlos Arthur Ortenblad Jr. presencia isso desde bebê, quando acompanhava a mãe em suas idas à Timbre. Seus 31 anos de vida tiveram a livraria como cenário recorrente. Foi essa familiaridade com o lugar que, três anos atrás, deu coragem ao tímido rapaz de abordar Wograine Evelyn Faria Dias, vendedora da livraria. A Timbre vai fechar, depois de mais de quatro décadas de existência, mas o namoro dos dois continua firme.
— Livrarias são espaços onde tudo é possível — diz Ortenblad. — Praticamente nasci dentro de uma e foi onde conheci o amor da minha vida. O meu amor por livros me levou ao amor romântico .