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Escritora indiano-americana Avni Doshi faz sucesso com romance sobre filha que tem prazer no sofrimento da mãe

'Açúcar queimado' ao Booker Prize, traduzido para 26 idiomas e já vendeu mais de 150 cópias pelo mundo; autora é fã de astrologia e chocou a família ao expor publicamente suas dúvidas sobre maternidade
A escritora indiano-americana Avni Doshi: "É bizarro que estejamos em 2021 e as mulheres ainda sejam estigmatizadas porque não querem ter filhos" Foto: Divulgação
A escritora indiano-americana Avni Doshi: "É bizarro que estejamos em 2021 e as mulheres ainda sejam estigmatizadas porque não querem ter filhos" Foto: Divulgação

Numa cena quase ao final de “Açúcar queimado”, romance da americana Avni Doshi recém-lançado no Brasil, a narradora, Antara, comenta a obra de um artista que acabara de voltar de Belo Horizonte intitulada “Anthropofagio”. “O confuso ensaio curatorial estampado na parede o define como canibalismo, que na história da arte brasileira é um conceito importante”, diz ela, “A incorporação e a digestão levam à produção de algo novo. Algo específico”. Antara vive em Pune, na Índia, e também é artista. Todos os dias, ela desenha o rosto do mesmo homem. Por mais que se esforce por fazer cópias idênticas, os desenhos saem diferentes a cada dia.

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Doshi, a autora, é historiadora da arte e trabalhou como curadora em Mumbai. Filha de imigrantes indianos e nascida nos Estados Unidos, ela foi apresentada à Antropofagia, movimento modernista que pregava a deglutição de influências estrangeiras e autóctones para formar a cultura nacional, por uma colega brasileira quando fazia mestrado em Londres.

— Essa ideia de canibalismo, de mastigação e digestão de influências para produzir algo novo, nos permite tirar a arte de um lugar cerebral e entendê-la visceral e corporalmente. Aprender sobre Antropofagia foi uma iluminação para mim — afirma a escritora, em entrevista ao GLOBO de Dubai, onde vive há seis anos.

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Com medo de que “Açúcar queimado” nunca fosse publicado, Doshi decidiu canibalizar as oito versões do livro e transformá-las numa obra de arte. Ela amassou as páginas em bolinhas de papel e, com elas, preencheu todos os nichos de uma estrutura preta coberta posteriormente com vidro.

— Foi uma tentativa de refletir sobre o fracasso. Foram sete anos de rascunhos, pensando que eu nunca ia terminar esse livro. Mesmo depois de finalizar o manuscrito, embora eu gostasse do que escrevi, não sabia se ele veria a luz do dia, se alguém ia ler — diz.

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O destino de "Açúcar queimado", porém, não era virar uma obra de arte na sala de Doshi. O livro foi publicado na Índia em 2019 e, no ano seguinte, indicado ao Booker Prize, um dos maios prestigiosos prêmios da literatura em língua inglesa. Já vendeu mais de 150 mil cópias em todo o mundo e foi traduzido para 26 idiomas. A cineasta indiano-canadense Deepa Mehta vai dirigir a adaptação cinematográfica.

Comunidade mística

Doshi narra a tempestuosa relação de Antara com sua mãe, Tara, que sofre de Alzheimer. "Eu estaria mentindo se dissesse que o sofrimento de minha mãe nunca me deu prazer", diz Antara na primeira linha do romance. Quando ela era criança, a mãe abandonou o marido e a levou para um ashram, uma comunidade mística. Tornou-se amante do carismático líder do ashram e passou a viver em função dele, abandonando a filha aos cuidados dos outros membros da comunidade. Antara nunca perdoou a mãe. As duas se tratam com hostilidade. Tara chega a botar fogo no ateliê da filha, quando, já debilitada pelo Alzheimer, vai morar ela e o genro.

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"Açúcar queimado" se passa numa Índia espremida entre as tradições e a modernidade. Shoppings centers e condomínios luxuosos dividem as ruas com miseráveis. Alguns culpam o aquecimento global pela falta de chuvas; outros, a falta de fé dos homens. Para a surpresa do leitor, os personagens que mais se preocupavam em preservar as tradições são Dilip, o marido de Antara, e a mãe dele, que há anos trocaram a Índia pelos EUA. Dilip não come carne e tenta se reconectar com a religiosidade de seus antepassados. A sogra de Antara não aceita que ela seja filha de divorciados e recorre aos serviços de um astrólogo para garantir que o casamento do filho não seja prejudicado pela inusitada posição de Marte no mapa astral da nora. "Bobagem supersticiosa", rebate a mãe de Antara.

A sogra de Doshi também já recorreu a um astrólogo. Num ensaio publicado, em 2017, na edição indiana da revista Harper’s Baazar, a escritora expressou suas dúvidas sobre ter filhos. Preocupada, a sogra consultou um astrólogo que garantiu que Doshi teria dois filhos.

— É bizarro que estejamos em 2021 e as mulheres ainda sejam estigmatizadas porque não querem ter filhos — afirma Doshi. — A ambivalência das mulheres em relação à maternidade não é um fenômeno da nossa geração. Desde tempos imemoriais, as mulheres escolhem ter ou não ter filhos.

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O astrólogo contratado pela sogra de Doshi acertou: logo após submeter o manuscrito de "Açúcar queimado" para publicação, ela deu à luz a um filho. No ano passado, a uma filha. Capricorniana com ascendente em escorpião e lua em touro, a escritora se interessa por astrologia "de um jeito mais ocidental".

— Astrologia é só uma outra maneira de contar histórias — diz ela.

A ambivalência das personagens de "Açúcar queimado" em relação à maternidade assustou familiares da autora e alguns leitores, que costumam perguntar se o romance tem inspiração autobiográfica (não tem). O resenhista do Washington Post elogiou o livro, mas disse que era um péssimo presente de Dia das Mães.

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Capa de "Açúcar queimado", romance da escritora da indiano-americana Avni Doshi publicado pela Dublinense Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Açúcar queimado", romance da escritora da indiano-americana Avni Doshi publicado pela Dublinense Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Açúcar queimado”

Autora: Avni Doshi. Tradução: Adriana Lisboa. Editora: Dublinense. Páginas: 272. Preço: R$ 69,90.