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Especialistas questionam investigação que acusa judeu de ter revelado o esconderijo de Anne Frank aos nazistas

Resultado de investigações lideradas por ex-agente do FBI, llivro "Quem traiu Anne Frank?" culpa o tabelião Arnold van den Berght, membro do Conselho Judaico de Amsterdã; título será publicado no Brasil em fevereiro
Para fugir dos nazistas, judia Anne Frank passou dois anos com a família em esconderijo e fez registros desse período em diário Foto: Divulgação/Agência O Globo
Para fugir dos nazistas, judia Anne Frank passou dois anos com a família em esconderijo e fez registros desse período em diário Foto: Divulgação/Agência O Globo

AMSTERDÃ — "Quem traiu Anne Frank ?" É comum que o público faça essa pergunta ao visitar Casa de Anne Frank, um museu construído em torno do anexo onde a adolescente que escrevia diários se escondeu dos nazistas por mais de dois anos.

Há décadas não havia novas pistas sobre o caso, mas o Peter van Twist, um produtor de mídia holandês, tinha certeza de que tecnologias modernas usadas na resolução de crimes, como inteligência artificial, análise de big data e testes de DNA, poderiam levar a conclusões melhores do que aquelas às quais investigações prévias haviam chegado.

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Há seis anos, Van Twist reuniu uma equipe de mais de 20 pesquisadores, com Vince Pankoke, detetive aposentado do FBI, à frente, para reabrir as investigações. No fim, as ferramentas ultratecnológicas contribuíram pouco para as novas descobertas, às quais os investigadores chegaram ao reexplorar pistas antigas. Eles contrataram a escritora canadense Rosemary Sullivan para escrever o livro "Quem traiu Anne Frank?" sobre o processo, que ela apresentou como uma verdadeira investigação criminal. O livro acaba de ser publicado nos Estados Unidos e na Holanda e será lançado no Brasil em fevereiro, pela HarperCollins.

O time de investigadores chegou a um suspeito: Arnold van den Bergh, um tabelião judeu de Amsterdã , que morreu de câncer na garganta em 1950. O nome não era desconhecido dos especialistas em Anne Frank. Em 1945, o pai de Anne, Otto Frank, o único membro da família que sobreviveu ao Holocausto e voltou a Amsterdã, recebeu uma carta anônima que dizia que Van der Bergh revelou aos nazistas onde eles estavam escondidos.

Otto Frank entregou a carta a um detetive holandês que conduziu uma investigação, em 1963, e rejeitou a hipótese de que a família havia sido traída. David Barnouw, autor o livro "Who Betrayed Anne Frank?" (Quem traiu Anne Frank?"), de 2003, também suspeitou de Van der Bergh, mas descartou a hipótese porque, além da carta, não havia nenhuma outra evidência.

Barnouw está entre os muitos historiadores holandeses que questionam as conclusões da equipe de Van Twisk. Devido à estratégia de comunicação da editora que publicou "Quem traiu Anne Frank?", as conclusões não foram amplamente compartilhadas. Todos os que contribuíram com as investigações assinaram acordos de confidencialidade. A maioria dos resultados foi mantida em segredo até o início desta semana, quando uma reportagem sobre o caso foi exibida no programa "60 Minutes", na TV americana.

Imagem das investigações que deram origem ao livro "Quem traiu Anne Frank?", de Rosamary Sullivan Foto: PRODITIONE / NYT
Imagem das investigações que deram origem ao livro "Quem traiu Anne Frank?", de Rosamary Sullivan Foto: PRODITIONE / NYT

Vários veículos repercutiram a notícia e apontaram Van der Bergh como o traidor sem o respaldo de especialistas. O site do jornal britânico Daily Mail publicou a matéria com a seguinte manchete: "Anne Frank foi traída por um tabelião JUDEU".

Emile Schrijver, diretor de um centro cultural judaico em Amsterdã, disse que recebeu uma cópia de "Quem traiu Anne Frank?" antes do lançamento, no final da semana passada.

— As evidências são fracas demais para acusar alguém — afirmou. — Eles baseiam uma acusação enorme em suposições, em pedaços de informação.

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Desde a semana passada, muitos especialistas em Anne Frank, Segunda Guerra Mundial e Holocausto, avaliaram as descobertas e muitos deles duvidam da teoria apresentada no livro.

— Eles trouxeram novas informações que precisam ser investigadas mais a fundo, mas não há nenhuma base para conclusões — disse Ronald Leopold, diretor-executivo da Casa de Anne Frank. Ele acrescenta que o museu não vai apresentar as descobertas como fatos, mas com uma de muitas teorias que foram levantadas ao longo dos anos.

"Quem traiu Anne Frank?" afirma que Van der Bergh tinha uma lista de judeus escondidos que ele conseguiu com o Conselho Judaico de Amsterdã. Ele ocupava um cargo na direção da organização. A administração nazista de Amsterdã criou o conselho em 1941, para controlar a população judaica, e colocou na liderança judeus atuantes em outras instituições que haviam sido banidas. Os funcionários do conselho recebiam carimbos em seus documentos de identidade que impediam que eles fossem deportados. Em 1943, a organização foi dissolvida e seus funcionários foram presos.

Segundo Laurien Vastenhout, pesquisador do Instituto NIOD de Estudos de Guerra, Holocausto e Genocídio e especialista na história do Conselho Judaico de Amsterdã,  não há evidência de que o conselho mantinha uma lista dos judeus escondidos,

— Por que as pessoas que escondiam judeus forneceriam seus endereços ao Conselho Judaico? — disse.

Leopoldo, o diretor da Casa de Anne Frank, afirma já ter ouvido boatos, "de fontes não confiáveis", de que o conselho tinha uma lista dos esconderijos. No entanto, ele disse que seria "muito muito arriscado manter esse tipo de lista", já que “ o Conselho Judaico estava sob vigilância constante da ocupação nazista".

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Van Twisk confirmou que sua equipe não encontrou a lista, mas afirmou que "várias fontes mencionam a existência dela”.

— Evidências circunstanciais também são evidências — disse.

Como o Conselho Judaico estava sob o controle dos nazistas quando eles implementaram seu programa genocida na Holanda — que resultou no assassinato de 75% da população judaica do país —, a organização, há muito tempo, tem sido alvo de suspeitas e culpabilizada pelas vítimas.

Quase 15 mil cidadãos holandeses foram condenados por colaborar com os nazistas nos julgamentos realizados após a guerra. Cerca de 10% deles haviam denunciado o esconderijo de judeus. Dos 152 condenados à morte, apenas 40 foram de fato executados. Apenas um dos condenados era judeu: Ans van Dijk, fuzilado por trair 145 judeus.

Segundo Vastenhout, os investigadores deveriam ter sido mais cuidadosos ao avaliar o papel do Conselho Judaico de Amsterdã, uma organização sobre a qual circulam informações equivocadas. O livro, disse ele, está "cheio de erros".

— O problema é que eles acusam sem apresentar nenhuma evidência real — afirmou. — Mais uma vez, repete-se a história de que tudo foi culpa dos próprios judeus e do Conselho Judaico.

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Rosemary Sullivan, a autora do livro, disse que os pesquisadores ficaram perturbados por sua investigação ter levado à acusação de um judeu.

— É uma descoberta dolorosa, mas acho que as pessoas vão entender — afirmou. — É isso o que acontece: as pessoas se voltam umas contra as outras e vivem em constante pavor.

Van Twisk e sua equipe chegaram a consultar uma rabino, que sua benção à publicação do livro.

— Ele disse que no Talmude (um dos livros sagrados do judaísmo) ensina que só uma coisa tem valor: a verdade — afirmou.

Historiadores, no entanto, questionam se o projeto resultou, de fato, na verdade.

— Este livro está cheio de expressões como "provavelmente" e "certamente" — disse Vastenhout.

Schrijver afirmou que não duvida das boas intenções dos investigadores.

— De um livro como este, resultado de tantos anos de trabalho, eu esperava alguma reflexão crítica sobre o que este caso nos ensina sobre a traição — disse. — A total falta de perspectiva histórica e contexto é o que mais me incomoda. Há uma diferença muito grande entre investigação criminal e pesquisa histórica.