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Flip 2021: 'Entristecer o mundo parece ser a vontade do capitalismo', diz Ailton Krenak no encerramento

Líder indígena participou de encontro inédito com Muniz Sodré; mais cedo, Adriana Calcanhotto cantou versão de 'Amazonas 2' em debate com o italiano Emanuele Coccia
Muniz Sodré e Ailton Krenak em encontro inédito no encerramento da Flip 2021 Foto: Reprodução
Muniz Sodré e Ailton Krenak em encontro inédito no encerramento da Flip 2021 Foto: Reprodução

Neste domingo, chegou ao fim a 19ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em sua segunda edição virtual por conta da pandemia — as gravações de todas as 19 mesas do evento estão disponíveis no YouTube da Flip. O encerramento contou com o aguardado e inédito encontro entre Ailton Krenak e Muniz Sodré, expoentes do pensamento indígena e afro-brasileiro, respectivamente.

Mediada pelo fundador da editora Malê, Vagner Amaro, a mesa teve como tema proposto as "Cartografias para adiar o fim do mundo", que possam propor diferentes maneiras de abordar os desafios do país e do mundo daqui para frente — partindo da "dimensão do sensível", como disse Sodré.

— Os humanos estão aceitando uma humilhante condição de consumir a terra, de comê-la — apontou Krenak, autor de "Ideias para adiar o fim do mundo" e "O amanhã não está à venda". — Entristecer o mundo parece ser a vontade do capital. O capitalismo quer fazer um mundo triste, monótono, para operarmos como robôs. Não podemos aceitar isso, estamos compartilhando o mundo com outros seres.

Sodré, ao falar das cartografias, lembrou uma fala do amigo escritor Caio Fernando Abreu que dizia que "é possível não dizer, o impossível é não sentir".

— Onde essas cartografias afetivas se realizam para consumir para um novo modo de pensar? — indagou Sodré, jornalista e sociólogo que publicou livros como "Pensar nagô" e "A sociedade incivil".

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"No que Darcy Ribeiro chamava de povos testemunhos", respondeu a si próprio:

— O que abrange no Brasil os povos indígenas e os de terreiro, de extração africana. Essas cartografias afetivas são um modo de resistir frente ao monoculturalismo do europeu, ao sistema dos assassinatos das outras formas de conhecimento. As cartografias afetivas faladas pelo Krenak de forma poética são instrumentos de uma outra política. Uma política de agregação humana, não a de girar como um peão por verbas orçamentárias.

'A Covid não ensina nada'

Vagner Amaro trouxe a pandemia da Covid-19 ao debate, instigando os participantes a compartilharem algumas reflexões que a crise sanitária tem inspirado nos dois.

Muniz Sodré, que chegou a ser internado por conta da doença, abriu a fala apontando "lições" :

— A grande lição é que a Terra resiste à sua domesticação. Há efeitos colaterais, e o vírus é um deles. Devemos aprender com o natural, para além da cidade. Há uma inteligência maior, a floresta, a mata como um modo de inteligência. A gente vê que o conhecimento não é regional, como alguns filósofos acreditam.

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Krenak, por sua vez, optou por estimular algumas provocações. Uma delas é que o ser humano, que "há anos tenta se convencer que é excelente", é pior do que o vírus, uma vez que consegue combatê-lo.

— Essa experiência da pandemia foi arrasadora, mas tenho dito que ela não ensina nada — afirmou Krenak. — Só se for ensinar a correr, se esconder. Me perdoem os que são brancos, mas não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina alguma coisa. Se ensinasse, os povos da diáspora estariam todos curtindo demais o século 21, depois de terem passado o inferno que passaram na escravidão. Não quero aprender nada se for para sofrer.

O mito da igualdade

Mais adiante, Amaro citou dois trechos, um da escritora Conceição Evaristo e outro do líder Yanomami Davi Kopenawa. A primeira diz que "a nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos", enquanto Kopenawa fala que "os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos".

A ponte criada pelo editor estimulou Muniz Sodré a falar sobre o "mito da igualdade", que, segundo ele, "é acalentado por um pensamento progressista, em geral da esquerda". Para ele, o que combate o racismo não é a igualdade, mas a aproximação:

— O Brasil é caracterizado por uma pluralidade radical. Em cima dela, não se pode forjar um povo único brasileiro. O povo branco rege a sociedade conforme seus interesses. Nesse momento, estamos batalhando pela desconstrução dessa ideia formal de igualdade, por meio da liberdade que é a aglutinação, os pontos de contato e as analogias. Correspondências que são mais importantes do que as diferenças do pensamento.

Krenak aproveitou para educadamente discordar de Darcy Ribeiro e de seu costume de evocar "O povo brasileiro".

— Era a veia ufanista dele. Só se for o ovo brasileiro, porque o povo brasileiro não existe — brincou Krenak. — É uma efervescência tão fantástica que ninguém vai criar uma coisa monótona entre nós. Dizer que somos iguais é dizer que somos cegos. Ou burros.

Mesa termina com Calcanhotto cantando

A mesa anterior, batizada de "Metamorfoses", reuniu a cantora e compositora Adriana Calcanhotto com o filósofo italiano Emanuele Coccia , cujo livro mais recente batizou o papo. No fim, a pedido dele e da mediadora Cecilia Cavalieri, Calcanhotto cantou uma canção. A escolhida foi “Amazonas 2”, de João Donato, Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti, gravada em 2012 por Joyce Moreno e Donato.

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A cantora estava num estúdio em meio à floresta, e pretende montar outro também em área verde na região de Paraty. Ela explicou como esse contato mais direto com a natureza a inspira:

— A música é permeável ao meio. A diferença entre gravar um disco em Copacabana e outro no meio da mata é impressionante. A troca, o jeito que a gente fica, tudo isso imprime na música. E Paraty tem muita cultura oral para ser registrada. Estar em ambientes assim muda os batimentos, os andamentos, o ritmo interno da gente enquanto indivíduo.

Calcanhotto também fez as vezes de mediadora, perguntando a Emanuele Coccia por que, sabendo que precisamos das plantas para a respiração, não agimos para preservá-las.

— Primeiro porque durante séculos houve uma tentativa de deixar de lado a existência vegetal. Somos animais, então é mais fácil nos relacionarmos com outros animais do que com plantas. Depois, é como se a espécie humana, ao deixar a floresta, comemorasse como um adolescente que consegue a independência dos pais — opinou o filósofo, que contou ter sido encaminhado para um psicólogo na adolescência quando respondeu, no questionário do serviço militar, que gostava de flores.

Coccia, cujas teses abordam a relação do homem com o meio vegetal, comemorou que "hoje podemos dizer, mesmo que superficialmente, que existe uma grande atenção para com as plantas. Existem best sellers sobre o assunto". E falou sobre a tese científica de botânicos como Stefano Mancuso (também convidado desta Flip) de que as plantas são conscientes e sabem se comunicar:

— A pergunta agora é: o que queremos fazer com essas novas amigas? Como queremos viver com as plantas? Botânicos como Mancuso testemunharam cientificamente que elas são conscientes, sabem o que acontece dentro e fora delas e a diferença entre dentro e fora. Elas se comunicam.

A Flip 2021

Este ano, a Flip não teve um autor homenageado, mas um tema: “Nhe’éry, plantas e literatura” . “Nhe’éry” é como os guaranis chamam a Mata Atlântica e quer dizer “onde as águas se banham”. Conforme divulgado em agosto, em vez de um único autor homenageado, a festa será dedicada a pensadores indígenas mortos pela Covid-19 , como o escritor Higino Tenório, o artista plástico Feliciano Lana, o líder guarani Domingos Venite, e a guardiã das plantas de cura do povo Mura, Maria de Lurdes.

Pela primeira vez, a Flip teve curadoria coletiva (uma "floresta curatorial", nas palavras da direção), formada pelos antropólogos Hermano Vianna e João Paulo Lima Barreto, pelo escritor Evando Nascimento, pela editora Anna Dantes e pelo crítico literário Pedro Meira Monteiro.

Realizada virtualmente entre 27 de novembro a 5 de dezembro, a Flip foi transmitida pelo canal da festa literária no YouTube e as mesas de abertura e encerramento foram exibidas pelo Canal Arte 1. Também contou com salas de exibição em Paraty e em cidades paraenses graças a parcerias com instituições locais. Nas salas de exibição, foi mantido o distanciamento social e era obrigatório o uso de máscara.