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Jeferson Tenório: com o premiado ‘O avesso da pele', que ganhou o mundo e vai virar filme, autor sobe ao primeiro escalão da literatura brasileira

Carioca radicado em Porto Alegre, filho de Ogum e fã de Beethoven não quer que sua obra seja reduzida apenas à questão racial
O escritor Jeferson Tenório em sua biblioteca de quase 3 mil volumes: "'O avesso da pele' não é sobre violência policial ou racismo, mas sobre a complexidade de relações humanas atravessadas pelo racismo" Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
O escritor Jeferson Tenório em sua biblioteca de quase 3 mil volumes: "'O avesso da pele' não é sobre violência policial ou racismo, mas sobre a complexidade de relações humanas atravessadas pelo racismo" Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

No dia 25 de novembro do ano passado, uma quinta-feira, Jeferson Tenório fez de tudo para se distrair e não pensar no Prêmio Jabuti , ao qual ele concorria com o romance “O avesso da pele” . A cerimônia virtual estava marcada para as 19h, mas, no fim da tarde, um temporal em Porto Alegre deixou-o sem luz. A bateria do celular também não resistiu. Perto das 20h, ainda no escuro, ele resolveu sair de casa à procura de internet e de informações sobre o prêmio.

— Aí a luz voltou. Botei meu telefone para carregar e minha assessora de imprensa me ligou: “Jeferson, onde é que você tá? Tá todo mundo querendo falar com você! Tu ganhou o Jabuti!” — conta Tenório, nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre.

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Além de faturar o Jabuti de Melhor Romance Literário, “O avesso da pele” foi finalista dos prêmios Oceanos e São Paulo de Literatura . Já vendido para o cinema e lançado em Portugal e na Itália, o romance ganhará ainda edições no Reino Unido e no Canadá . Na semana passada, apareceu na lista de mais vendidos da revista Veja.

Lançado em agosto de 2020 pela Companhia das Letras, “O avesso da pele” assegurou a Tenório um lugar no primeiro escalão da literatura brasileira contemporânea. Não que antes ele fosse um autor desconhecido. Seus dois romances anteriores agradaram os críticos. “O beijo na parede” (Sulina, 2013) foi premiado pela Associação Gaúcha de Escritores, selecionado para o Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e distribuído em escolas de todo o país. Já vendeu 80 mil cópias. “Estela sem Deus” (Zouk, 2018) ganhou uma elogiosa resenha no GLOBO (“O autor transborda talento ao narrar a experiência de uma adolescente em busca de sua identidade”, escreveu Tom Farias ) e será reeditado pela Companhia das Letras no segundo semestre.

Longe da sala de aula

Tenório reconhece que “a vida mudou bastante” desde a publicação de “O avesso da pele”. Em 2020, ele se tornou o primeiro patrono negro da Feira do Livro de Porto Alegre (a distinção é concedida desde 1965) e passou a assinar uma coluna no jornal gaúcho Zero Hora. Também se afastou da sala de aula — “momentaneamente”, ele faz questão de sublinhar —, depois de quase duas décadas como professor de português para se dedicar à escrita. Tenório já escreveu cerca de 40 páginas de um romance sobre a experiência de alunos cotistas na universidade pública — ele próprio foi da primeira turma de cotistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — e está terminando de redigir sua tese de doutorado, sobre a representação paterna nas literaturas portuguesa e luso-africana , a ser defendida em março na PUC-RS.

— Deixei a sala de aula com dor no coração. Financeiramente, foi uma decisão arriscada, mas me permite dar mais qualidade ao que eu produzo. Perdi a segurança econômica, mas ganhei tempo para escrever — diz Tenório, cujos alunos se interessavam por sua carreira literária e às vezes até levavam livros para ele autografar. — Alguns até brincavam: “Professor, o senhor é um escritor reconhecido, aparece no jornal, por que vir o inverno todo com o mesmo casaco?”

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“O avesso da pele” narra a história de Henrique, um professor assassinado por policiais que o tomaram por bandido devido à cor de sua pele. O romance é narrado por seu filho, Pedro, que tenta reconstituir a vida do pai. Henrique lutou a vida toda para que a cor de sua pele não determinasse seu destino.

Tenório credita parte do sucesso a seu esforço por alcançar uma linguagem clara, que não afaste nenhum leitor, e ao acirramento das lutas antirracistas — o livro saiu poucos meses após o assassinato de George Floyd, nos EUA. De fato, a prosa de Tenório é cristalina. O narrador é paciente e engata uma frase na outra com calma e sem floreios. E, de fato, de uns tempos para cá, cresceu o interesse do público por obras de autores negros que não se furtam a discutir o racismo brasileiro , de Conceição Evaristo a Itamar Vieira Junior .

Jeferson Tenório, porém, nunca quis que “O avesso da pele” fosse apenas um comentário sobre a violência racista brasileira. O próprio livro reivindica o direito dos negros de não serem reduzidos à cor de sua pele. “E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem que preservar algo que não se encaixa nisso, entende?”, diz Henrique ao filho. “É necessário preservar o avesso.”

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— Quando o livro saiu, me perguntavam muito sobre violência policial enquanto eu queria falar das referências a Shakespeare e Dostoiévski . Depois, mais gente entendeu que “O avesso da pele” não é sobre violência policial ou racismo, mas sobre a complexidade de relações humanas atravessadas pelo racismo. Toda pessoa negra é tensionada pela necessidade de se colocar politicamente devido a sua cor e, ao mesmo tempo, não se deixar ser reduzida a ela — diz Tenório. — Por muito tempo, o que autores negros escreviam não era visto como literatura, mas como ativismo ou sociologia. Reduzir uma obra a uma questão racial é também reduzir seu valor estético.

Tenório fala como escreve: de maneira precisa, calma, sem exageros. Quase não se distingue o sotaque gaúcho. Nascido em Madureira, na Zona Norte do Rio, em 1977, ele seguiu para Porto Alegre com a família aos 13 anos. Hoje com 45, diz que, sempre que vem ao Rio, volta para casa chiando o “S”. Falou com o pai, que foi embora quando ele tinha um ano de idade, uma única vez, ao telefone, no Natal de 2015. Ouviu que o pai tinha virado pastor evangélico e tido outras duas filhas. Tenório, que é pai de um menino, tem uma outra irmã por parte de mãe e ainda não conheceu sua família carioca. Como Estela, sua personagem, ele é filho de Ogum , orixá que homenageou em uma história publicada no livro “Contos de axé” (Malê). O gosto pela leitura veio só no final da adolescência, quando ele fazia cursinho pré-vestibular. O professor Jorge Fróes, também um homem negro, apresentou-o à literatura e colocou sua biblioteca de mais de oito mil volumes à disposição do rapaz.

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— Passei a gastar tudo o que eu ganhava como office boy com livros. Até então, literatura para mim era “Iracema”. Um dia, o professor leu o conto “Feliz ano novo”, do Rubem Fonseca , em sala de aula e mostrou que aquela linguagem cheia de palavrões, erótica, despojada e violenta também era literatura — diz Tenório, que estima ter quase três mil livros em sua biblioteca . — Eu até plagiava Rubem Fonseca! Uma vez, escrevi um conto sobre canibalismo. Era sobre uma moça que vai jantar na casa do namorado e descobre que ela é o jantar. Entreguei para o professor, que leu e, cheio de dedos, me disse: “Está bom, mas é uma cópia de ‘Nau catrineta’, do Rubem Fonseca.”

No ritmo

Quando começou a escrever, Tenório imaginava que seria poeta. Já ganhou concursos de poesia e tem cerca de 150 poemas na gaveta. Fã de Racionais MC’s, Mano Brown , Criolo e Emicida , ele também foi rapper . Integrou o grupo Magma Rap, que se apresentava nas periferias de Porto Alegre e acabou após o assassinato de um dos membros, que havia se envolvido com traficantes locais. Tenório, porém, já saíra do grupo havia alguns meses “por causa do Beethoven”. O Magma Rap gravava suas letras em CDs que traziam batidas de rap. Um dia, à procura de CDs de batidas numa loja no centro de Porto Alegre, Tenório perguntou ao vendedor por discos de Beethoven , compositor que ele conhecera ao ouvir “Sonata ao luar” em um filme.

— Não me esqueço da cara que o vendedor fez para mim, porque eu me vestia como os rappers americanos: brinco na orelha, bermudão, boné. Ele me mostrou os CDs de música clássica. Eu nem sabia que existia esse gênero. Peguei um CD do Beethoven para ouvir, gostei e decidi comprar. No caixa, meus amigos perguntaram que CD era aquele. Eu respondi: “É Beethoven.” “Mas é rap?” “Não, é música clássica.” Começamos a discutir porque tínhamos ido lá para comprar CD de batida e o Beethoven era caro. Comprei o Beethoven com o meu dinheiro, saímos da loja e voltamos a discutir. Disse que não queria mais fazer parte do grupo e eles me mandaram longe. Fui para a casa com o meu Beethoven — conta o escritor, que ainda gosta de música clássica. — E de rap.