Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Merval Pereira: ‘O jornalismo ajuda a sociedade a se mover’

Eleito para a presidência da ABL, colunista do GLOBO conversa com Zuenir Ventura, colega de fardão e de páginas, sobre os rumos da política e da profissão que escolheram
Merval Pereira, novo presidente da Academia Brasileira de Letras Foto: / Leo Aversa
Merval Pereira, novo presidente da Academia Brasileira de Letras Foto: / Leo Aversa

RIO — Engana-se, como eu, quem acreditava que o jornalismo tivesse sido a primeira e única paixão de Merval Pereira. Até se decidir pela crônica política, a partir de 2003, uma inquietação de jovem o fez frequentar várias áreas, a começar por trocar o curso científico pelo clássico, ou seja, a matemática pelas letras. Depois, interrompeu a faculdade de Direito e, em seguida, fugiu do emprego que seu pai lhe arrumara num banco, antes mesmo da entrevista de recrutamento. Uma visita ao ateliê de Iberê Camargo e uma estada em Londres, onde estudou gravura em metal, despertaram seu interesse por artistas plásticos do século XX, principalmente Andy Warhol, Francis Bacon e Volpi. E, antes mesmo de se dedicar ao jornalismo, já devorava Machado e Eça, sem falar na leitura de adolescência dos cronistas Rubem Braga , Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino.

Leia também: Com entrada de Fernanda Montenegro, ABL se torna mais pop

Em 2002, Merval aceitou um convite e estreou na literatura, participando da coletânea “21 histórias de amor + 21 histórias de amor”, da Editora Francisco Alves, reunindo autores consagrados e novatos. Porém, o sucesso que o levou a estender seus comentários ao rádio e à televisão — além de colunista do GLOBO, jornal em que pisou pela primeira vez como estagiário, em 1968, é também comentarista da Globonews e da rádio CBN — não deixou espaço nem tempo para a ficção.

Zuenir Ventura: 90 anos feliz, sem doenças e cantarolando 'Gracias a la vida'

Ele foi logo saudado como a grande novidade no colunismo político, recebendo elogios de personagens importantes dessa cena, como senadores, deputados e ministros que destacaram seu perfeccionismo e sua competência. Mas quem primeiro percebeu a analogia que hoje é um lugar-comum foi o ex-ministro de Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia: “Merval é um legítimo sucessor do Castelinho ( o jornalista Carlos Castelo Branco 1920-1993 ). Conheci-o quando eu era secretário de imprensa do Itamaraty,e ele, jovem repórter, impressionava pela acuidade da observação. Vai nos presentear com seus textos, furos e análises”.

Leia também : Em livro, jornalistas como Pedro Bial expõem desafios da imprensa

Em 2011, sua trajetória jornalística o levou a conquistar a cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras, instituição que o elegeu ontem como presidente para o período de 2022 . Na entrevista a seguir, um pouco do que Merval pensa hoje.

Como se sente incluído num time comandado por craques como Castelo Branco e Elio Gaspari?

Castelinho conheci pessoalmente, quando morávamos em Brasília, durante a ditadura militar, convivi muito com ele. Era formidável ver como ele conseguia transmitir informações na coluna driblando a censura, os militares que não queriam muitas vezes que informações saíssem. Fiz o prefácio da nova edição do livro dele (“Os militares no poder” ), fiquei muito honrado porque a família dele me convidou. O título do meu livro “O Lulismo no poder” é uma homenagem. Ele é um exemplo até hoje. Trabalhei com Elio Gaspari na Veja quando ele era diretor (da redação). É uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Ele me influenciou muito, me deu muitas orientações e direção de como escrever sobre política. A série de livros dele sobre a ditadura é fundamental.

Merval Pereira e Zuenir Ventura Foto: Leonardo Aversa / Agência O Globo
Merval Pereira e Zuenir Ventura Foto: Leonardo Aversa / Agência O Globo

Você ganhou muitos prêmios.

Fiquei muito feliz com o Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia, que é um prêmio para o conjunto da obra e não um prêmio pontual. Ganha-se por ter feito um trabalho de relevo no jornalismo das Américas. Fiquei felicíssimo de entrar na ABL como jornalista, me deu muita satisfação. Escrevo meus contos, jogo fora, estou escrevendo agora de novo. Castelinho entrou por ser jornalista. Escreveu uns contos, mas entrou como jornalista. O Murilo Mello Filho a mesma coisa. Você mesmo, tendo escrito vários livros, entrou por ser um grande jornalista.

Algumas pessoas criticavam sua coluna na época do Lula, da Dilma, e agora dizem que “a primeira coisa que faço é ler o Merval”. Hoje, são os bolsonaristas que criticam. Você está vivendo uma polarização. O que mudou?

Eu não mudei. Como era muito crítico ao PT, passou pela cabeça dos bolsonaristas, e na de Bolsonaro, que eu poderia ser um aliado. Ele disse até numa entrevista na Globonews, durante a campanha, que me admirava muito, e ficou surpreso quando comecei a criticá-lo. Assim como os petistas ficaram quando comecei a criticar Bolsonaro, porque eu criticava Lula. Até a denúncia da existência do “mensalão”, minha relação com o pessoal do PT, e com o próprio Lula, era de normalidade. Dali para a frente, virei inimigo, nem mesmo adversário. Não há conversa inteligente sobre política, o destino do país. É um exemplo típico de como estamos vivendo. Ou é um lado, ou o outro.

Você morou nos Estados Unidos. O que o nosso jornalismo deve ao americano?

O que me chamou atenção mesmo foi o caso Watergate. Fiquei deslumbrado com a possibilidade de escrever coisas gravíssimas sobre o governo, e ser protegido pelas leis. Acompanhei muito e, a partir daí, comecei a me enfronhar nessa história da imprensa americana. Tenho várias biografias de editores de jornais americanos, do New York Times, a história do Washington Post. Lendo, a gente vê que em várias ocasiões a imprensa peitou presidentes, de qualquer tendência, e a Suprema Corte e a Justiça estadual, na maioria das vezes, deu apoio à liberdade de imprensa. No momento em que não há imprensa livre, não há o que contenha o dirigente autoritário. Estamos vivendo isso hoje no país, a imprensa é fator fundamental para a manutenção da democracia. Quando comecei no grupo Globo o linotipo era no térreo do prédio e quando começava a rodar o jornal, tudo tremia. Peguei a chegada do computador na redação. Seja em que plataforma for, e hoje temos milhares, o jornalismo é que ajuda a sociedade a se mover. Constatar que a profissão que escolhi é central numa democracia é reconfortante.

Se tivesse que escolher hoje entre Lula e Bolsonaro, quem você escolheria?

Não é o Bolsonaro. Em 89, anulei (o voto), porque sabia quem era o Collor, que foi meu colega de colégio. E o próprio Lula depois disse que naquela ocasião não estava preparado para ser presidente. Depois veio o Plano Real, votei em FH. A partir do mensalão nunca pensei no PT como solução, sempre votei nos candidatos do PSDB. Em 2018, anulei o voto.

Você vê alguém apontando para a terceira via?

O PSDB, que sempre disputou com o PT a hegemonia política do país, se desmontou, está completamente destruído pelas brigas internas. Acho difícil para qualquer um dos candidatos que vencer as prévias unir o país. Acho Sérgio Moro um bom candidato, começou bem, está com visão boa. Anunciar o Affonso Celso Pastore como orientador econômico é um bom sinal, porque é um economista brilhante, uma pessoa que faz parte de um grupo de pensamento econômico que já fez o Plano Real. É um liberal, acha que o Estado não tem que ser nem mínimo, nem máximo, quer abrir a economia para o mundo. Ciro Gomes está tentando vir para o centro desde 2018, está vindo, mas é imprevisível, do ponto de vista pessoal, de temperamento. Mas é candidato importante, com bom recall. Dos novos que vão ser lançados, não vejo nenhum com estrutura partidária. Talvez isso seja o de menos, mas mas não têm história política.

Você gosta de biografias. Roosevelt, Churchill e De Gaulle. Qual dos três você mais admira?

Churchill é meu favorito, tenho vários livros sobre ele. Pelo que fez, e porque era o mais humano dos grandes líderes. Fazia tudo o que hoje o politicamente correto critica —fumava charuto desbragadamente, bebia no café da manhã, mas era um gênio político. Você pode criticar De Gaulle por ter sido autoritário, mas tinha um projeto de país, defendia pontos centrais para a França. Hoje não se tem grandes estadistas, nem de direita, nem de esquerda.

Que romance levaria para uma ilha deserta?

Escrevi um texto num livro com a opinião de várias pessoas sobre a obra que mudou sua vida, vai sair em março. “O encontro marcado”, do Fernando Sabino, tem esse papel na minha vida, e um pouco de “O apanhador no campo de centeio”, de Salinger. Mas, numa ilha deserta, acho que levaria o “Em busca do tempo perdido”, de Proust, que nunca terminei. No momento, leio o livro de contos do Chico Buarque (“Anos de Chumbo”), o da Ana Maria Machado (“Vestígios”), e um do critico francês François Dosse sobre a influência dos intelectuais franceses entre 1944 e 1989, isto é, do final da Segunda Guerra até a queda do Muro de Berlim.