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Perseguido pelo regime stalinista, Andrei Platônov ganha lançamento no Brasil de romance publicado após sua morte

Escrito no fim dos anos 1920, 'Tchevengur' vai do épico à sátira política em um mergulho na revolução comunista
Ilustrações de Svetlana Filippova para o romance 'Tchevengur', de Andrei Platônov Foto: .
Divulgação / Editora Ars et Vita
Ilustrações de Svetlana Filippova para o romance 'Tchevengur', de Andrei Platônov Foto: . Divulgação / Editora Ars et Vita

Nem só de Tolstói e Dostoiévski vive a literatura russa. Com “Tchevengur”, chega por aqui outro grande nome dessa tradição, o escritor Andrei Platônov, enfim publicado como se deve: em volume próprio e com textos críticos. Escrito no fim dos anos 1920, o romance é uma oportunidade de mergulhar no universo do autor que Brodsky chamou de “indescritível” e Stálin de “canalha”.

A divergência entre os Josephs resume a vida turbulenta de Andrei Platônov (1899-1951), admirado por seus colegas escritores e sabotado pelo poder. Embora apoiado por artistas como o futuro prêmio Nobel Mikhail Chólokhov, o autor de “Tchevengur” foi criticado e perseguido por não se alinhar ao regime stalinista. Teve manuscritos apreendidos, sua casa invadida, sua vida pessoal vigiada de perto. Não foi mandado ao gulag, mas seu filho de 15 anos sim — o rapaz voltou quase uma década depois, acometido por uma tuberculose que também mataria Platônov.

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Mesmo sem ser publicado, Platônov nunca deixou de escrever. Muitos de seus textos tiveram que esperar sua morte e mais algumas décadas até virem a público. Os russos, por exemplo, só leram “Tchevengur” na íntegra em 1988, com a perestroika. Os brasileiros tivemos de esperar mais de 30 anos até sair em português o livro, com sua mistura insólita de “Dom Quixote”, romance de formação, sátira, utopia/distopia e apocalipse.

“Tchevengur” conta a história de Aleksandr “Sacha” Dvánov, rapaz idealista enviado numa busca pelo “socialismo espontâneo das massas” no interior da Rússia. Sacha nos conduz por uma galeria de personagens excêntricos, a começar por seu pai, um pescador que se matou por curiosidade de saber onde era a morte. Aparecem também um autoproclamado “deus” (em minúscula), um homem que mudou seu nome para Fiódor Dostoiévski, e os habitantes da cidade de Tchevengur, onde o único trabalhador era o sol.

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O livro se divide em mais ou menos três partes. O início traz a formação de Sacha nos anos pré-Revolução, vivendo em meio à pobreza, à fome e à doença. Narrado sempre em terceira pessoa, o romance abre com o inventor e mecânico ferroviário Zakhar Pávlovitch, futuro pai adotivo de Sacha, predominando no foco narrativo, que depois se concentra na perspectiva do protagonista.

Já adulto, sob o “comunismo de guerra”, Sacha embarca na busca pelo tal “socialismo espontâneo”, na segunda parte do romance. Refém de anarquistas, Sacha é resgatado por Stepán Kopienkin, um Dom Quixote das estepes: seu Rocinante é o cavalo Força Proletária; sua Dulcineia, a revolucionária Rosa Luxemburgo. Só não se sabe quem seria o pragmático Sancho Pança neste romance cheio de personagens idiossincráticas que parecem ter se descolado da realidade para melhor inventá-la.

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A terceira parte, mais longa, se passa em Tchevengur. O foco narrativo se diversifica e o tom do romance oscila: vai de uma cáustica sátira política (mas “sem perder a ternura jamais”) a uma batalha épica e, finalmente, a um arremate pungente, entre lírico e trágico.

Assim descrito, o romance parece desconjuntado. Mas funciona. Em parte, por um jogo muito eficiente de isca e recompensa. Personagens laterais, que parecem sumir sem boas justificativas, retornam muitas páginas depois, de modo surpreendente. Sem dar spoiler, é o caso da relação entre Sacha e um menino (Próchka) da família que o adotou antes de Zakhar. Cruel e mesquinho na infância, Próchka ressurge em Tchevengur como um intelectual do partido, um ortodoxo marxista vulgar — transformado em diversos aspectos, mas não todos.

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Outra razão pela qual “Tchevengur” funciona tão bem é a linguagem de Platônov. Relativamente clara e límpida, ela nos surpreende com imagens ricas e expressivas. Por todo o livro, Platônov usa personificações, que diminuem a distância entre pessoas, animais, plantas e até objetos. Uma personagem examina uma locomotiva, que lhe responde “com a brandura das forças inteligentes” (p. 89); Kopienkin defende “a honra proletária de seu cavalo” (p. 295); as estrelas se movem “como camaradas, sem afastarem-se ao ponto de esquecerem umas das outras, e sem aproximarem-se demais, para que não se fundissem num todo em que perderiam sua diferença” (p. 420).

Sem rótulos

A vida da matéria e a matéria da vida se misturam em “Tchevengur”, como diz o escritor argentino Juan Forn: “as leis do cosmos, da natureza, da história e do coração humano se tecem num assombroso mecanismo em cada livro que Platônov escreveu”. Escritor e engenheiro, proletário e pensador, Platônov sugere, se não uma comunhão, ao menos a presença de vasos comunicantes entre as várias dimensões da existência. Reinventar uma seria reinventar todas.

Nisso, Platônov revela ao mesmo tempo sua filiação à Rússia revolucionária e os limites que a realidade lhes impôs. A narrativa mostra a originalidade e a liberdade com que os tchevengurianos se entregam à tarefa de criar na província uma vida igualitária jamais vista em qualquer capital, inclusive as europeias. Mas não esconde a brutalidade, a ganância, os inimigos imaginários e os concretos que interferiram na tentativa.

Não à toa, a obra de Platônov ficou engavetada por décadas e ainda hoje não se deixa classificar toscamente como pró ou anticomunista. Em “Tchevengur”, como nos melhores longos romances russos a que faz companhia, a vida é recriada em toda sua complexidade, com dobras e mistérios, com suas duas faces de sonho e pesadelo.

Henrique Balbi é escritor e professor de literatura, mestre em Estudos Brasileiros e doutorando em Literatura Brasileira (USP)