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Por Socorro Acioli*/ Especial Para O GLOBO


“Costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas”, escreveu Lygia Fagundes Telles, como alternativa à morte e às desistências. Costurou enquanto pode, até chegar a inevitável hora da partida. Morreu amada como a escritora que cumpriu o desejo e o sonho anunciado tão cedo, aos 15 anos de idade, quando publicou o seu primeiro livro. Partiu como a maior de seu tempo, a autora mais completa, celebrada por seus pares e sobretudo por gerações de leitores que nunca param de chegar.

Escrever foi a sua forma de suturar as feridas da alma humana. Sem concessões. Não há miséria que não tenha sido contada por ela: morte, desengano, armadilha, violência. Mas há também na sua obra uma força espalhada nas decisões e nas camadas profundas de suas personagens. Sempre um gesto de coragem contundente, sempre uma mulher atravessando as marés, sempre os inconformados em porte de luta.

Temos muito a aprender com Lygia. Algumas das suas constatações sobre viver e escrever estão reunidas no livro “Durante aquele estranho chá”, crônicas de memória com feição de contos, no estilo sofisticado e elegante que é a sua marca. A primeira lição é de valor inestimável: a coisa mais importante de uma carreira são os amigos que fazemos, as relações de afeto e admiração trazidas pela profissão. Este livro é, também, uma homenagem aos grandes amigos de Lygia e a alguns encontros que marcaram sua trajetória.

Ela conta, com amor e graça, dos seus momentos com Clarice Lispector, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, Simone de Beauvoir, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, entre outros nomes que atravessaram o seu pensamento de forma definitiva, deixando suas marcas.

Da convivência com Clarice, há a segunda lição: o de não se levar a sério demais, não partir do pressuposto da superioridade. Em um congresso de escritores em Cali, na Colômbia, as duas estranharam as caras muito sisudas, a pose, o peito estufado, a vaidade, a fala rebuscada dos colegas. Trocaram tudo isso por uma rodada de vinho e espumante, uma conversa leve. Lygia foi ao evento preparada para dizer que a literatura é como os anjos, não tem gênero, mas ao invés disso teve de explicar para a plateia colombiana que brasileiros falam português.

A terceira lição é sobre a pressa que os jovens escritores tem de aparecer de qualquer maneira. Ela mesma se arrepende dos livros que publicou cedo demais, custeando a edição. É mais prudente ter paciência, deixar que a vida mostre as coisas que o autor precisa saber para que o texto tenha profundidade, camadas, sentido. “Um escritor desesperado é uma contradição”, ela disse.

A quarta lição ela aprendeu com Borges: o mais importante da vida é o sonho. Quando ela pergunta que mensagem ele poderia deixar naquela despedida, ele comenta sobre um amigo que desistiu de viver quando desaprendeu a sonhar. Isso é central, importante, é dínamo perpétuo.

A quinta lição aparece quando ela conta a reação de Drummond às críticas que Mário de Andrade fez à sua poesia. Apenas seguiu. “A vida não era uma ordem? Então, toca a prosseguir implacável, fiel consigo mesmo numa caminhada não sobre nuvens mas na dureza do asfalto. Acariciando não a cabeleira da fantasia mas agarrado aos ásperos cabelos do cotidiano e no qual se há radiosas estrelas”.

Amar os amigos; não derrapar no orgulho e na vaidade; ter paciência; acreditar nos sonhos e aceitar a vida como uma ordem, sendo fiel a si mesmo. Costurar as feridas até o limite possível. Escrever é também doar uma parte da vida aos leitores. Em cada livro há um pedaço da alma de Lygia, que passa a ser nossa, que se expande no poder inesgotável das palavras. É como um milagre de transubstanciação: um corpo que vira livro e se multiplica, um delírio, uma ideia borgiana que agradaria Lygia, uma mulher que acreditava nos milagres e nos sonhos.

Socorro Acioli é escritora e professora de Literatura da Pós-Graduaçao em Escrita e Criação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)

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