Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Sucesso de Amanda Gorman, que discursou na posse de Joe Biden, aumenta interesse por poesia e atrai jovens

Desde o ano passado, os acessos ao site da Academia de Poetas Americanos subiram 25%; poema lido pela americana em Washington segue no topo dos livros mais vendidos
A poeta Amanda Gorman Foto: Dave Kotinsky/GettyImages
A poeta Amanda Gorman Foto: Dave Kotinsky/GettyImages

LONDRES — Com prefácio de Oprah Winfrey, o poema de Amanda Gorman que encantou o mundo na posse do presidente Joe Biden, “The hill we climb” (“A montanha que escalamos”, em tradução livre), não sai da lista dos vendidos do New York Times. A primeira antologia da poeta de 22 anos só sai em setembro (no Brasil inclusive, assim como o poema à parte, ambos pela Intrínseca), mas a obra está igualmente no topo do ranking da Amazon. O rosto de Amanda, desconhecido até sua emocionante performance em janeiro, numa Washington traumatizada pela invasão do Capitólio, é agora um símbolo global do interesse crescente pela poesia. Num momento de tanta dor, incerteza e divisão, o gênero tem atraído um público mais jovem, que consome ou produz poesia como tentativa de enxergar respostas e alívio no caos.

Falam de amor e perdas? Sim, mas os autores emergentes, com grande destaque para as mulheres, não estão presos a formatos rígidos, e dão sobretudo um tom político ao atual boom poético. Seus seguidores estão entre as multidões que se revoltam contra injustiça social, desigualdade e racismo. Nos EUA e no Reino Unido, mercados que pautam os grandes lançamentos literários, a popularidade da poesia tem crescido sistematicamente entre adolescentes e millennials desde 2018, impulsionada pela força das redes sociais. Com a pandemia e a eclosão de protestos como o Black Lives Matter, o apetite aumentou.

Paulo Gustavo : Na missa de sétimo dia, Déa Lúcia canta 'Fascinação' e Susana Garcia critica falta de vacina

Desde o ano passado, os acessos ao site poets.org, da Academia de Poetas Americanos, subiram 25%. Na plataforma de eventos on-line Eventbrite, o número de encontros para discutir poesia cresceu 24% desde a aparição de Amanda em Washington. Outro fenômeno dessa nova poesia — pop e viralizante — é a indiana-canadense Rupi Kaur, que já vendeu oito milhões de livros percorrendo temas como depressão, violência sexual e identidade.

— Poemas estão por toda parte. É um crescimento comandado por jovens — confirma Jen Benka, presidente da Academia de Poetas Americanos. — Mas não é só uma questão de facilidade de compartilhamento. A poesia oferece uma linguagem que pode levar a entendimento, reflexão, consolo e compaixão.

Ana Maria Bahiana : Integrante de associação ligada ao Globo de Ouro  conta os bastidores da crise do prêmio

Ela ressalta também a diversidade que o gênero tem alcançado. Em 2020, pela primeira vez, nenhum dos indicados ao prêmio de poesia do National Book Award, um dos mais importantes da literatura americana, era branco. Para a poeta Afshan D’souza-Lodhi, falar em renascimento dos versos é pouco. Nascida em Dubai e criada na Inglaterra, ela acredita que a poesia precisava se livrar do estigma elitista associado à lírica e se aproximar do público. Redes como Tumbrl e Instagram viraram o jogo. A internet permite que autores soltem a voz misturando a tradição oral com a linguagem visual dos novos meios, sem precisar de uma grande editora bancando a aventura artística.

—O público mudou. Agora adolescentes querem estampar frases de “Leite e mel” (coleção de Rupi) na camiseta. O crescimento do público mostra que a poesia precisa falar dos problemas que enfrentamos hoje. Não é apenas um renascimento, é uma revolução. Jovens não brancos, principalmente as mulheres, estão resgatando a poesia e direcionando o olhar para si próprios — diz ela, que se identifica como mulher queer não branca.

Afshan lançou sua primeira antologia (“re:desire”) em 2020, explorando o desejo de amar — o outro ou a Deus — sob a visão de quem cresceu entre culturas distintas. Selina Nwulu, um dos nomes que mais se destaca entre os jovens escritores no Reino Unido, também acredita que, em seu melhor estado, a poesia funciona como testemunha do cotidiano:

A poeta Cecilia Knapp
Foto: Haylen Madden
A poeta Cecilia Knapp Foto: Haylen Madden

— A poesia está evoluindo e crescendo. Vivemos mudanças radicais e incertezas políticas É uma época em que muitos questionam as estruturas tradicionais de poder e conhecimento, e se voltam para o escritor em busca de orientação e conforto — interpreta, reconhecendo que sua escrita será sempre política. — Eu poderia escrever uma história de amor e, para mim, seria política. Eu falaria sobre como o casal se conheceu, a dinâmica do poder no relacionamento e, se for um casal do mesmo sexo, como sentem que podem se mover no mundo — exemplifica a autora, que aborda questões como migração, raça e mudanças climáticas, assuntos conectados às angústias das novas gerações.

Já a obra de Cecilia Knapp, recém-premiada com a nomeação de Jovem Poeta Laureada de Londres, discorre de forma autobiográfica sobre assuntos como saúde mental, mal que ela ajuda a combater com o engajamento em campanhas de prevenção ao suicídio. “Quando o médico disse que ela deveria comer mais, ela riu/ Disse que esperou a vida inteira para ficar magra assim e eu ri com ela/ Quando tento ouvir de novo sua voz, não consigo/ Esse pequeno pedaço é o que tenho”, escreveu sobre a experiência de ver a mãe morrer muito cedo.

— No último ano e meio, minha escrita passou a refletir um estado de angústia e questionamento que faz parte desse momento de frustração. Não escrevi explicitamente sobre a pandemia, mas meu trabalho reflete essa energia da incerteza — conta a poeta, que viu o número de inscritos em seus workshops bater recordes nos últimos meses.

Para Robert Eaglestone, professor de Literatura do Royal Holloway, da Universidade de Londres, o que se vê é a ascensão de uma poesia mais acessível, mas não necessariamente vazia:

— Rupi Kaur foi criticada por fazer uma poesia muito simples, mas analiso poemas dela com meus alunos e acho que eles são muito mais complexos do que parecem. Esse interesse pela poesia está ligado a um ativismo político que é muito mais presente hoje entre jovens. A relevância da política para eles se uniu à densidade da linguagem poética.

Brasil também vê crescimento do gênero

A poesia entrou no cotidiano brasileiro. Está nas listas de mais vendidos, mas também nas competições e nos posts do Instagram. É tão comercial (com best-sellers como João Doederlein, o Akapoeta, e Ryane Leão) como underground (como Adelaide Ivanova e Ana Frango Elétrico). E o sucesso do gênero nos últimos anos no país está justamente ligado a este processo de dessacralização, apontam poetas, pesquisadores e editores. Um fenômeno de popularização que impactou a forma de consumo, em especial entre os mais jovens.

— A forma de consumir poesia mudou porque o acesso mudou — explica a poeta, slammer e produtora cultural Mel Duarte, uma das autoras presentes na recente coletânea “29 poetas hoje” (Cia das Letras). — Muitas pessoas que gostam de poesia não têm acesso aos livros, mas conseguem um wi-fi de graça na praça e, dessa forma, podem consumir nas redes diversos artistas que se identificam. Hoje, a poesia é uma das ferramentas de transformação social mais acessíveis e potentes que temos em mãos.

Para a poeta e pesquisadora Roberta Estrela D’Alva, a ressignificação da poesia passa por uma “recuperação social do poeta”.

— O leitor descobriu que a poesia não é algo inalcançável — diz ela. — Ela não é só os grandes clássicos, ela fala das nossas questões. Já ouvi jovens falarem “Isso também é poesia? Então eu gosto” em rodas de slam.

Editora da Companhia das Letras, a poeta Alice Sant’Anna lembra que, desde o início dos anos 2000, vem se formando uma onda de feiras de livros independentes, com enorme quantidade de novos poetas e de editoras pequenas dedicadas ao gênero.

— Uma poesia múltipla, engajada e diversa ganha cada vez mais espaço nas livrarias — diz. — E o seu alcance vai muito além da página. ( Bolívar Torres )