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Cultura Livros

'Torto arado': como uma ficção nacional chegou a 100 mil exemplares vendidos

Sucesso remete a tempos em que literatura brasileira rivalizava com best sellers estrangeiros e livros autoajuda
O romance "Torto arado", de Itamar Vieira Júnior, é a única ficção nacional entre os 20 mais vendidos do ranking da PublishNews Foto: André Mello
O romance "Torto arado", de Itamar Vieira Júnior, é a única ficção nacional entre os 20 mais vendidos do ranking da PublishNews Foto: André Mello

Todo editor comemora quando um autor de ficção nacional vende a tiragem inteira de seu livro, que costuma ficar entre dois e três mil exemplares. Se essa marca já é vista como sinal de sucesso, dá para imaginar a surpresa do mercado editorial diante da escalada do romance “Torto arado” (Todavia), do estreante baiano Itamar Vieira Júnior : na semana passada o livro chegou aos cem mil exemplares vendidos, sendo 70 mil apenas nos últimos três meses.

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É a única ficção nacional entre os 20 mais vendidos do ano na lista geral da Publishnews. O último autor brasileiro a conseguir esse feito foi ninguém menos do que Chico Buarque, com “Essa gente” (Companhia das Letras), em 2019. Mas o próprio escritor-compositor já foi desbancado por Vieira Júnior. Pela lista da Publishnews, que trabalha com uma amostra das lojas de varejo, “Torto arado” vendeu, neste último trimestre, metade do que “Essa gente” em todo o ano de 2020.

O livro aparece ao lado de publicações de autoajuda como “Mais esperto que o diabo” (Citadel), de Napoleon Hill, e o romance de época “O duque e eu” (Sextante), da americana Julia Quinn , cujo sucesso foi catapultado pela série “Bridgerton” — caminho que "Torto arado" também deve percorrer, com os direitos já comprados pelo cineasta Heitor Dhalia .

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Prêmios literários e redes sociais

O escritor baiano Itamar Vieira Junior, autor de "Torto arado", romance vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos Foto: Arquivo pessoal / Divulgação
O escritor baiano Itamar Vieira Junior, autor de "Torto arado", romance vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

O fenômeno “Torto arado” surpreende mais pelas peculiaridades da obra. Romance polifônico narrado por diversas vozes, e que trata de temas como racismo e trabalho escravo no Brasil profundo, a obra não parecia predestinada à lista de mais vendidos. Para os analistas de mercado, seu sucesso remete a outros tempos da literatura brasileira, em que autores como Jorge Amado , Luis Fernando Verissimo e Rubem Fonseca rivalizavam com best-sellers estrangeiros. Há exatos 30 anos, “Estorvo”, de Chico Buarque, teve uma trajetória parecida com o livro de Vieira Júnior: em poucos meses, atingiu os mesmos 100 mil exemplares vendidos.

Lançado no Brasil em 2019, após ganhar primeiro uma edição em Portugal no ano anterior, o livro só explodiu mesmo a partir de setembro de 2020, quando saltou de dez mil cópias vendidas para 33 mil ao final de dezembro. O crescimento coincidiu com sua consagração em dois prêmios (o Jabuti de romance literário , em novembro, e o Prêmio Oceanos , em dezembro), mas principalmente com sua presença nas redes sociais. Compartilhado por celebridades, políticos e influencers, virou o produto cultural que todo mundo quer mostrar em seus stories do Instagram. De janeiro para cá, vendeu 70 mil cópias e teve sete vezes mais menções no Twitter do que “A sutil arte de ligar o foda-se”, de Mark Manson, que vendeu 700 mil cópias desde 2017.

Responsável por adquirir os títulos para a Rede Saraiva até 2017, o executivo-comercial Waldiney Mendes Azevedo não se lembra de ter visto outro caso parecido com “Torto arado” recentemente.

— Todo ano o mercado editorial tem um título que surpreende, mas “Torto arado” não tem as características de um livro que se torna um fenômeno — diz Azevedo, que atuou durante 20 anos como gerente de produtos da rede.

A agente literária Marianna Teixeira Soares, que fechou o contrato de Vieira Júnior com a editora Todavia, concorda: “Torto arado” se impôs como o perfeito fenômeno orgânico. Tanto o autor quanto sua editora e sua agente são sinceros. Nenhum deles esperava que o livro fosse chegar tão longe.

— O livro foi premiado, mas outros também foram e não tiveram o mesmo sucesso — lembra Soares. — Ele trata de um assunto pertinente, como o racismo e a escravidão, mas outros livros também. Acho que todos estes fatores têm ajudado no boca a boca.

Livros e a pandemia

O romance de Vieira Junior ganhou no ano passado o Prêmio LeYa, que dá € 100 mil ao vencedor e um contrato de publicação com o grupo editorial português. O livro teve uma tiragem inicial de 8 mil exemplares em Portugal e 3 mil no Brasil. Foto: Divulgação / Todavia
O romance de Vieira Junior ganhou no ano passado o Prêmio LeYa, que dá € 100 mil ao vencedor e um contrato de publicação com o grupo editorial português. O livro teve uma tiragem inicial de 8 mil exemplares em Portugal e 3 mil no Brasil. Foto: Divulgação / Todavia

Com longa trajetória no mercado editorial, Mauro Palermo, hoje diretor da GloboLivros, lembra que no passado autores como João Ubaldo Ribeiro eram garantia de best-seller. Um de seus maiores sucessos, “A Casa dos Budas ditosos” (Objetiva), de 1999, vendeu mais de 300 mil exemplares.

— Há muito tempo que não se via uma ficção brasileira tão bem posicionada, talvez seja um sinal de que o mercado esteja mudando — observa Palermo. — Há, claro, autores como Chico Buarque, mas nesse caso o que vende é muito mais o Chico do que o livro. Acho que “Torto arado” tem se beneficiado não apenas do boca a boca, mas também dos leitores que o recomendam nas redes sociais. Na pandemia, isso se tornou a melhor forma de divulgação de um livro. Você vê um amigo recomendando e já compra direto em alguns cliques.

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Gerson Ramos, diretor comercial da editora Planeta, acha que o sucesso do livro pode não ser um fato isolado, mas talvez o sinal de uma possível nova relação de consumo dos leitores.

— Há uma população enclausurada que está lendo mais e também está mais disposta a ler autores de qualidade que não leriam antes — acredita ele. — Com o momento ruim que o país está vivendo, também pode sinalizar um movimento de valorização da nossa identidade, do que é nosso.

'Novo clássico'

Em um mercado segmentado, dividido por nichos e gêneros literários, “Torto arado” conseguiu o feito de furar a bolha de quem consome literatura brasileira contemporânea de qualidade. Para o editor Leandro Sarmatz, responsável por levá-lo para a Todavia, o romance deu um traço de união a leitores com histórias e gostos diferentes.

— As pessoas estão descobrindo um autor que elas julgam destinado ao cânone — diz Sarmatz. — Vai daí que tanta gente tem proclamado que o romance é um “novo clássico”. Porque hoje é muito difícil todo mundo estar na mesma frequência na recepção desses objetos culturais.

Outro padrão dos nossos tempos é a fama. Nomes conhecidos como Jô Soares e Fernanda Torres atraem o público para seus livros. No caso de Itamar Vieira Junior, o livro fez dele um nome conhecido. Para o escritor, isso se deve à “universalidade” de seu romance.

— Falo de sentimentos que todo mundo entende, como liberdade e o direito a se sentir pleno no chão em que pisamos — diz Vieira Junior. — Mesmo que trate de um universo muito particular em um lugar muito particular do Brasil, conecta os leitores.