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Tramas astrológicas: editoras apostam em ficção moldada por signos

Nos livros de Vitor di Castro, Luly Trigo e Ray Tavares, horóscopo influencia enredo e personagens
Astrologia invade literatura Foto: Agência O Globo
Astrologia invade literatura Foto: Agência O Globo

RIO — “Se vocês não acreditam em signos, é melhor fechar este livro agora mesmo”, diz o narrador de “Inferno astral” (Planeta), romance young adult do escritor, youtuber, influencer e roteirista Vitor di Castro. A obra é uma espécie de “ficção astrológica”, na qual, durante 12 dias, o personagem principal é obrigado a conviver com as piores características de cada signo do zodíaco. Com a astrologia em alta, principalmente entre leitores mais jovens , o mercado editorial aposta em histórias que não apenas usam o horóscopo como tema, como o incorporam na própria narrativa.

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Em livros como os recém-publicados “O que dizem as estrelas” (Seguinte), de Luly Trigo e “Cartas aos astros” (MapaLab), de Ray Tavares, os signos e seus ascendentes explicam as ações dos personagens, produzem dramas e conflitos e influenciam o andamento da trama.

— A astrologia traz questões de personalidade que são ótimas para a inspiração — diz Vitor di Castro, que conta com assessoria de uma astróloga para produzir os vídeos de seu canal “Deboche Astral”, no YouTube. — Por mais que seja um estudo milenar, muito matemático, envolve nuances que servem como fontes de conflito.

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As histórias curtas de “O que dizem as estrelas”, de Luly Trigo, são definidas pela sua editora como “contos astrológicos” ou “astrocontos”. Cada uma delas traz um protagonista com um signo solar diferente, que enfrenta dramas como mudanças de domicílio, fins de relacionamento e brigas com amigos. Luly diz que o estudo dos signos a ajudou a preencher lacunas não tão óbvias em seus personagens — aquelas características pessoais a que os próprios escritores às vezes não dão tanta atenção.

— Já ouviu um autor comentar que um personagem fez alguma coisa que ele não estava esperando ao escrever a história? Aí, ó, ( o autor ) não fez o mapa astral dele — brinca Luly, que fez formação em astrologia, mas não vive diretamente da profissão.

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Um dos recursos literários do horóscopo é oferecer perfis prontos, que servem como ponto de partida para os contadores de histórias. Arianos, por exemplo, são seres impulsivos. Taurinos são românticos, cancerianos, sensíveis, piscianos, sonhadores... E por aí vai.

— Um bom escritor consegue brilhar quando tem restrições de elementos — diz Ray Tavares, pseudônimo de Raíssa Jacobucci, que explica o paradoxo. — Quando a gente tem liberdade criativa absoluta, acaba travando.

Tavares acredita que a astrologia ajudou a tornar a sua escrita mais tridimensional, na medida em que passou a jogar com os estereótipos e expectativas de cada signo. Autora de “Cartas aos astros”, sobre um jovem que decide escrever a todas as mulheres de diferentes signos que fizeram parte de sua vida, ela vê o horóscopo como uma “possibilidade”, não uma determinação.

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Um exemplo disso aparece em “Os 12 signos de Valentina” (Galera Record), outro young adult astrológico de Tavares. No livro, a protagonista ariana encontra o seu libriano dos sonhos, mas não consegue se conectar com ele, mesmo com o crush reunindo elementos astrais perfeitos. Na verdade, continua apaixonada por um rapaz do qual ela sequer sabe o signo. Moral da história: mapa é legal, mas a conexão humana é mais importante.

— Dá para brincar com os arquétipos dos signos e surpreender o leitor — diz a escritora. — A astrologia não é uma verdade absoluta. Ela é só um guia, não define nada.

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Há muitas maneiras de a astrologia se unir à ficção. Para escrever seu primeiro romance, que deve sair em 2023 pela Paralela e ainda não tem título, a astróloga e influenciadora Isabella Mezzadri voltou-se para a astrocartografia (técnica que combina astrologia e viagens para saber em quais lugares do mundo as linhas do planeta de seu mapa são mais vantajosas).

— Nesse momento, estou trabalhando no livro em Buenos Aires porque as linhas de planetas passando por aqui favorecem a escrita — diz a autora. — Quantas pessoas não percebem, em um determinado momento da vida, que estão vivendo circunstâncias que parecem incríveis aos olhos dos outros, mas na verdade se sentem infelizes? A personagem do meu livro irá tomar coragem para embarcar em uma jornada em busca de compreender o que realmente quer para si e, no caminho, aprenderá sobre como a astrologia e a astrocartografia podem ajudá-la nesse processo.

Com a astrologia se tornando um mercado milionário para influencers e produtores de conteúdo, é normal que a literatura de entretenimento se volte para o tema. Nos Estados Unidos, os chamados “serviços místicos” movimentaram 2,2 bilhões de dólares em 2018, segundo o New York Times. Por aqui, o canal de Vitor di Castro tem cerca de 1,6 milhão de inscritos no YouTube, e o instagram de Isabella Mezzadri, quase 400 mil. Com essa audiência, se tornaram alvos lógicos dos editores.

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Influenciando leituras

O filão também já faz parte do marketing do setor. A Intrínseca, por exemplo, publicou recentemente em seu site uma lista com dicas de leitura para cada signo. Listas do tipo, aliás, pululam na internet. A coordenadora de comunicação e marca Cinthia Jardim, de 31 anos, já leu em uma delas que seu signo solar (escorpião) costuma apreciar livros de suspense e crimes. E concordou com a afirmação. Ela também segue outra tendência cada vez mais comum entre leitores: fazer o mapa astral dos personagens de livros que lê. O hábito inclui clássicos como “Anna Karenina”, de Tolstói.

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— A Anna é escorpiana, sem dúvida. É ousada, intensa, passional — acredita Jardim. — Seu marido, um burocrata com pouco contato com suas emoções, deve ser capricorniano ou virginiano. E seu amante é sagitariano, aberto a novas experiências. Um bon vivant .

União entre signos e literatura não é de hoje

Em uma tarde de 1922, Cecília Meireles ocupou uma mesa do café lisboeta “A Brasileira” e aguardou por Fernando Pessoa, com quem havia marcado um encontro. Esperou duas horas, mas o lusitano, que ela queria conhecer em sua passagem por Portugal, não apareceu. Quando voltou para o hotel, descobriu um bilhete com uma justificava para o “bolo”. Ao ler seu horóscopo pela manhã, Pessoa concluíra que aquele não era um dia propício para encontros. E, assim, por capricho dos astros, dois dos maiores poetas da língua portuguesa nunca se cruzaram.

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Obcecado por horóscopo, o português criou para os seus heterônimos características astrológicas bem específicas, que se refletiam tanto nos poemas quanto nas biografias imaginárias deles. Também fez centenas de mapas para outras pessoas — alguns deles foram reunidos no livro “Fernando Pessoa – Cartas astrológicas”, organizado por Paulo Cardoso. Em 1915, o poeta se fez passar por um astrólogo chamado Raphael Baldaya, que cobrava até 5 mil réis por mapa.

Assim como Pessoa, autores de diferentes épocas se interessaram por signos, mostrando que a relação entre literatura e horóscopo não é de hoje. Há desde os que escreveram sobre o assunto sem nunca pesquisar muito sobre ele (como Vinicius de Moraes em “A mulher e o signo”), até aqueles que mergulharam de cabeça, levando-o para suas vidas e obras.

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Na Casa do Sol, antiga residência de Hilda Hilst transformada em instituto, estão guardados os vários mapas astrais que a autora fez de seus amigos. A taurina com ascendente em capricórnio também pedia aos seus anfitriões que fizessem o dela. Durante sua passagem por lá, em 1969, Caio Fernando Abreu, outro louco por signos, mapeou a amiga. O autor gaúcho usou o termo “Trindade da alma” para definir as características astrais de Hilda — o que significava que ela recebia, nas palavras dele, “todas as dores do mundo”.

— A astrologia é uma prática de observação e sensibilidade, que traça correspondência com o que acontece na vida, as experiências das pessoas, e como a gente pode narrar isso — diz a poeta, astróloga e editora Julia C. Hansen. — Por isso atrai tanto os escritores. Ela, aliás, existe quase há tanto tempo quanto a poesia.