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Trineto de Eça de Queiroz lança romance sobre o assassinato de travesti brasileira no Porto

Publicado agora no Brasil, 'Pão de Açúcar', de Afonso Reis Cabral, foi o vencedor do Prêmio Literário José Saramago
O escritor Afonso Reis Cabral, autor de 'Pão de Açúcar', Foto: Ana Branco
O escritor Afonso Reis Cabral, autor de 'Pão de Açúcar', Foto: Ana Branco

SÃO PAULO — Quando publicou seu primeiro romance “O meu irmão”, em 2014, aos 24 anos,  o escritor português Afonso Reis Cabral se irritava quando lhe enchiam de perguntas sobre seu ilustre trisavô: Eça de Queiroz (1845-1900), autor de “O primo Basílio”, “A cidade e as serras” e outros romances que fazem quase todo mundo se lembrar das aulas de literatura da escola. Quando o repórter, já no fim da entrevista por Zoom, anuncia uma pergunta sobre o antepassado famoso, Cabral cai na risada e diz que, apesar da “afetuosidade” que sente “pelo Eça”, “é um bocadinho ingrato falar do tema”.

O trineto é um dos administradores da Fundação Eça de Queiroz, sediada na Casa de Tormes (nas proximidades do Porto), a mesma onde vive Jacinto, o protagonista de “A cidade e as serras”, sempre dividido entre Paris e a província portuguesa. As primeiras lembranças literárias de Cabral remetem ao trisavô, que ele, menino, não sabia direito quem era, embora soubesse que se tratava de um parente importante.

— Eça é uma figura tão grande em Portugal que é quase um dado adquirido. E sobre os dados adquiridos nós não pensamos muito — diz Cabral, cujas principais influências literárias são John Steinbeck, Liev Tolstói e Marcel Proust, mas não Eça. — Quando saiu “O meu irmão”, eu me irritava um bocadinho com as comparações e perguntas, mas já passou algum tempo, saiu outro romance, e hoje ninguém pensaria em comparar as duas prosas.

Capa do livro 'Pão de Açúcar' Foto: Divulgação
Capa do livro 'Pão de Açúcar' Foto: Divulgação

Se alguém de fato quiser compará-las é só ir a uma livraria e comprar “Pão de Açúcar”, segundo romance de Cabral, vencedor do Prêmio Literário José Saramago, publicado em Portugal em 2018 e que acaba de sair no Brasil. Em comum, o trisavô e o trineto têm o talento para a análise psicológica. Mas enquanto Eça entrava na cabeça de seus personagens para expor a hipocrisia da elite portuguesa, Cabral quer descobrir a humanidade dos marginalizados. Se a prosa de um impressiona pela precisão e pelo realismo, a do outro é afetuosa.

“Pão de açúcar” é a investigação literária de um crime real: o assassinato de Gisberta Salce, travesti brasileira morta por um grupo de 14 adolescentes depois de dias de tortura num supermercado abandonado no Porto, em fevereiro de 2006. O “caso Gisberta” mobilizou a imprensa e a sociedade portuguesas, que pressionaram por mudanças na legislação de proteção aos transexuais. Gisberta se transformou em símbolo da comunidade LGBT+.

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Em 2016, ao ler na imprensa matérias que recordavam o “caso Gisberta”, Cabral percebeu uma lacuna na história. Gisberta vivia nas ruínas de um Pão de Açúcar (o supermercado) nunca inaugurado e, no início, ficara amiga de seus algozes, um grupo de internos de uma instituição católica. Eles até levavam comida para ela. Como uma relação que começou afetuosa degringolou em tamanha violência? Cabral se pôs a investigar: leu tudo que o que pode sobre o caso (inclusive o processo judicial), visitou as ruínas do Pão de Açúcar e conversou com amigas de Gisberta. O resto, ele inventou. Ele avisa ao leitor que escreveu um livro de ficção, não uma “reportagem mais ou menos literária".

— Os fatos são o chão que sustenta o livro. O resto é imaginação. É como um jogo de xadrez: os fatos são peças postas diante de mim, mas sou em quem está a jogar — explica. — É perigoso ler “Pão de açúcar” como uma explicação dos fatos. O livro não é nada disso. É uma outra coisa. Espero eu que seja literatura.

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Cabral embaralha fato e ficção com habilidade. Descreve a comida que os rapazes preparavam para Gisberta (arroz, segundo as reportagens) e até conta de dois cachorrinhos que ela teve e que morreram atropelados. Os meninos são inventados. Reis Cabral muda os nomes dos três que primeiro conheceram Gisberta: Nélson, Samuel e Rafa (o narrador). E inventa personalidades para cada um a fim de “ludibriar” (a palavra é dele) o leitor a reconhecer alguma humanidade neles: um desenha, o outro é bom de papo e o narrador sonha em reformar uma bicicleta.

Nascido no Porto, em 1990, Cabral ensaiou os primeiros versos aos 9 anos. A morte da fadista Amália Rodrigues, que arrancou lágrimas de todo o país, comoveu também o menino, que começou a escrever poesia.

— Por semanas, a TV portuguesa exibia as cerimônias fúnebres e homenagens a Amália, que aparecia a cantar poesia trovadoresca e versos de Camões, David Mourão Ferreira, Alexandre O’Neill e Ary dos Santos — recorda. — Era a literatura se apresentando a mim em estado puro, pronta para ser descoberta. Aceitei o desafio.

A travesti brasileira Gisberta Salce, assassinada no Porto em 2006 Foto: Reprodução
A travesti brasileira Gisberta Salce, assassinada no Porto em 2006 Foto: Reprodução

Cabral escreveu poesia até os 15 anos, quando lançou o livro “Condensação”. Depois, abandonou a poesia pela prosa. Aos 24 anos, lançou “O meu irmão”, sobre um professor de meia-idade que tem inveja da suposta inocência e da aparente felicidade do irmão, que tem Síndrome de Down. Cabral tem um irmão com Síndrome de Down, mas afirma que o livro não é nada autobiográfico e aponta as diferenças entre ele e o narrador: além de ser décadas mais jovem, ele nunca invejou a condição do irmão. O romance venceu o Prêmio Leya.

Viagem a pé

A alguns personagens Cabral empresta características suas. Um caminhoneiro (“camionista”, em lusitano) que aparece em “Pão de açúcar” diz que “as estradas em Portugal não tem comprimento suficiente para pensarmos”. Uma viagem de Chaves, no Norte, a Faro, no Sul, acaba antes de “esboçarmos a primeira ideia”. De carro, dá para percorrer os 738 quilômetros da Estrada Nacional 2, que liga Chaves a Faro em pouco mais de sete horas, mas Reis Cabral levou 24 dias. Ele foi a pé e se surpreendeu com a solidariedade dos seus conterrâneos.

— No interior, ainda existem os anjos da hospitalidade, como na Bíblia e nos clássicos gregos. Abrir a própria casa para quem vem de fora é quase um dever moral. Eu tinha hospedagem apenas para os três primeiros dias. Depois, as pessoas me ofereceram suas casas, almoço, jantar. Viajei para estar sozinho, mas estava sempre acompanhado — conta.

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A odisseia rendeu um livro de não ficção: “Leva-me contigo”, publicado em 2019 e inédito no Brasil. Reis Cabral diz que até deu para esboçar algumas ideias pelo caminho.

— Mas às vezes o esforço físico era tamanho que o cérebro se ocupava apenas de mexer uma perna atrás da outra.

“Pão de açúcar”

Autor: Afonso Reis Cabral. Editora: HarperCollins. Páginas: 256. Preço: R$ 49,90.