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'Ulisses', 100 anos: Brasil foi o país que mais traduziu o romance intraduzível de James Joyce

Lançada há um século, obra terá em breve a quarta versão em português, feita a 36 mãos
Retrado do escritor irlandes James Joyce, autor de "Ulisses", por Émile Blanche Foto: ARCHIVES SNARK / Agência O Globo
Retrado do escritor irlandes James Joyce, autor de "Ulisses", por Émile Blanche Foto: ARCHIVES SNARK / Agência O Globo

Intraduzível é o adjetivo mais comumente associado a “Ulisses”, romance do irlandês James Joyce , publicado há exatos cem anos, que revolucionou a literatura com intrincados jogos de linguagem, fluxos de consciência labirínticos e um diálogo inusitado com a “Odisseia” de Homero. O Odisseu moderno é Leopold Bloom, judeu que angaria anúncios para um jornal e passa o dia 16 de junho de 1904 perambulando por Dublin até retornar para sua esposa, a adúltera Molly. Embora verter “Ulisses” para outra língua seja uma verdadeira odisseia, o Brasil é o país que mais traduziu o romance de Joyce no mundo. Já são três, e uma quarta está a caminho. Nenhum outro idioma conta com tantas traduções de “Ulisses” quanto o português: além das brasileiras, há duas lusitanas.

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Lançado em 2 de fevereiro de 1922 em Paris, pela livraria Shakespeare & Company comandada por Sylvia Beach — a publicação do romance foi seu presente de aniversário para o amigo Joyce, que completava 40 anos—, “Ulisses” não demorou a chamar atenção da intelligentsia brasileira. O primeiro a escrever sobre a odisseia joyceana foi Mário de Andrade , em “Da fadiga intelectual”, em junho de 1924. Sérgio Buarque de Hollanda chegou a prometer algumas palavras sobre “Ulisses”, mas desistiu ao saber que Gilberto Freyr e também preparava um ensaio sobre o livro. Em dezembro de 1924, no Diário de Pernambuco, Freyre descreveu o romance como “reportagem taquigráfica de flagrantes mentais”. “O inglês das suas obras é o que será o difícil de soletrar”, afirmou. E com razão. As primeiras traduções de “Ulisses” ainda demorariam um bocado para aparecer por aqui. Trechos da obra foram traduzidos por Erasmo Pilotto, Pagu e Haroldo de Campos em 1946, 1947 e 1962, respectivamente.

Transmigração das almas

A primeira tradução integral de “Ulisses” em português foi lançada pela Civilização Brasileira, em 1966. Afastado da diplomacia pela ditadura militar, o filólogo Antônio Houaiss (1915-1999) traduziu as mais de 700 páginas em menos de um ano. A segunda apareceu em 2005, de Bernardina da Silveira Pinheiro (1922-2021), uma das maiores estudiosas de Joyce no país, e lançada pela Objetiva. Em 2012, a Companhia das Letras publicou a versão de Caetano W. Galindo , com reedição chegando hoje às livrarias. E, em junho, pela Ateliê Editorial, sairá uma tradução feita a 36 mãos. Organizador de “Ulisses, a dezoito vozes”, Henrique Xavier recorre ao conceito de “transmigração das almas”, crucial no romance (os personagens de Homero “reencarnam” nos de “Ulisses”), para justificar o projeto.

— Para reencarnar de novo em português, “Ulisses” precisou de 18 tradutores diferentes na impossibilidade de encontrar uma única alma gêmea — diz ele.

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Segundo Xavier, as traduções precedentes homogeneízam a linguagem dos 18 episódios do livro, cada um deles inspirado em diferentes tradições literárias. Entre os tradutores, estão estudiosos e admiradores de “Ulisses” como Luci Collin, Luisa Geisle r e Donaldo Schüler, que verteu outra obra intraduzível de Joyce para o português: “Finnicius Revém” (“Finnegans Wake”), cuja reedição inaugurou a coleção “Rolarriuana”, que lança “Ulisses, a dezoito vozes”. Professora da UFSC, Dirce Waltrick do Amarante foi incumbida da tradução do segundo episódio do romance, “Nestor”.

— Ao traduzir, me senti como o protagonista do conto “Dreamtigers”, de Jorge Luis Borges , que conhece tudo sobre o tigre, mas quando vai reproduzi-lo em sonhos, ele surge “dissecado” e “com impuras variações de forma”. Então exclama (e eu também) “Ó, incompetência” — diz Dirce.

O poeta e tradutor Augusto de Campos elogiou a disposição de Houaiss para “subverter o idioma para corresponder às invenções do original”. Erudita, a tradução do filólogo já foi acusada de ser mais complicada do que o original em inglês. André Conti, que editou a tradução de Galindo, em 2012, discorda. Para ele, a tradução de Houaiss é primorosa e deve ser lida como resposta ao anseio de modernistas como os irmãos Campos de indicar “o tamanho da genialidade estética” da obra. A recente reedição do “Ulisses” de Houaiss (lançada no final de 2021) foi criticada pelo corte de um trecho do texto de Campos e pela substituição do consagrado esquema de análise de Carlo Linati, que relacionava os episódios do romance aos da “Odisseia” por um guia de leitura assinado pelo escritor Ricardo Lísias , publicado originalmente em uma revista, em 2008.

— Foi feito para um público amplo, não para a academia. Não sou um especialista, mas um admirador — afirma Lísias, para quem boa parte das críticas veio de quem não leu seu guia. — Teve crítica com motivações pessoais escrita para ser compartilhada em rede social.

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Na contramão de Houaiss, a tradução de Bernardina, cuja reedição a Nova Fronteira promete para junho, notabilizou-se por recuperar a coloquialidade do texto.

— Bernardina conheceu com o biógrafo de Joyce, Richard Ellmann, que havia convivido com o irmão dele. Quando ela traduz o livro, tem uma perspectiva de consolidação de fortuna crítica e estudos sobre o livro que não estavam disponíveis para Houaiss — diz Conti.

Enquanto a tradução de Houaiss capta “o movimento polissêmico de vozes, estilos e narradores” da obra, compara Conti, a de Bernardina da Silveira Pinheiro prioriza a trama.

— Ela se vê diante da possibilidade rica de mostrar que ali tem um livro que conta a vida de uma pessoa vivendo um drama no casamento, é um excluído da sociedade antissemita da época. Atrama importa e ela evidencia isso — afirma.

Caetano Galindo, por sua vez, buscou tanto a fluidez que por vezes falta em Antônio Houaiss quanto a fidelidade aos jogos de palavras, sacrificada em alguns trechos por Bernardina para não afastar o leitor. Segundo Galindo, as dificuldades de traduzir “Ulysses” (ele optou por grafar o título do livro com Y) são de “toda ordem”: “oralidade, jogos de palavras, tipo de narrador, interpenetração de narrador e consciência de personagens etc.” Mas a odisseia vale a pena.

— “Ulysses” é um romance cômico, dotado de uma capacidade quase infinita de ternura, que não dá as costas ao sofrimento. Escandalosamente carnavalizado, mudou a história da literatura ao afirmar o afeto e o riso. Não é pouca coisa — afirma Galindo. — Ele nos propõe um muito menos trágico, pós-religioso, anárquico e pacifista, movido pelo interesse, pela curiosidade e pela tolerância.

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Ler “Ulisses” é outra odisseia. Não são raros os que desistem no meio do caminho. Para Lísias, criou-se no Brasil um fetichismo em torno da obra que reforça a dificuldade. Ele também critica interpretações academicistas de “Ulisses”.

— Uma das grandes características do modernismo artístico é dar autonomia ao leitor, o que parece não ser aceito no Brasil. O leitor pode e deve ler “Ulisses” e dizer o que entendeu. Essa compreensão é tão válida quanto a do maior especialista — diz Lísias, que elogia as traduções brasileiras do romance. — Todas são excelentes.

Para Conti, é preciso reconhecer que o romance é, sim, uma leitura difícil, mas ao mesmo tempo prazerosa.

— O livro é cheio de desafios, mas recompensa o esforço do leitor. Se você leu “O retrato do artista quando jovem” antes de ler “Ulisses”, a experiência é outra. Vale o esforço. Se você não entender as referências à política irlandesa, vai encontrar ali uma história engraçada, cheia de vida— afirma Conti, lembrando que “Ulisses” é simultaneamente objeto de repulsa e curiosidade. — Nos anos 1990, havia um anti-intelectualismo no país. Falava-se em tirar a literatura do pedestal. E quem estava nesse pedestal era “Ulisses”.