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Venda de livros anticiência na Amazon provoca debate

Após ser procurada pela reportagem, loja virtual removeu parte dos títulos; especialistas veem problema no algoritmo do site, que recomenda, de acordo com a procura, obras 'negacionistas'
Pacotes da Amazon em um centro de distribuição da empresa em New Jersey, nos Estados Unidos Foto: Lucas Jackson / Reuters
Pacotes da Amazon em um centro de distribuição da empresa em New Jersey, nos Estados Unidos Foto: Lucas Jackson / Reuters

SÃO PAULO - Quem busca na Amazon um livro para entender a Covid-19 pode acabar encontrando títulos que desprezam a existência de uma pandemia e duvidam até mesmo do próprio coronavírus e de sua letalidade. Livros assim não são difíceis de achar na versão brasileira da gigante de vendas. Os resultados para buscas com palavras-chave sobre a situação atual levam a essas obras. E, uma vez dentro da página que detalha o conteúdo e as opções de compra na Amazon, mais indicações conspiratórias aparecem.

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Livros assim não são difíceis de encontrar na versão brasileira da Amazon. Os resultados para buscas com palavras-chave sobre a situação atual levam a essas obras. E, uma vez dentro da página que detalha o conteúdo e as opções de compra, mais indicações conspiratórias aparecem abaixo de chamadas como “Frequentemente comprados juntos” e “Quais outros itens os consumidores compraram após visualizar este item?”.

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— A Amazon não só lucra com os livros que usam sua plataforma, mas também com a sugestão de livros de conspiração junto a outras compras e com a coleta de dados sobre os cliques das pessoas — explica Marc Tuters, professor da Universidade de Amsterdã, que estuda a oferta de desinformação na Amazon junto a um grupo de pesquisadores no projeto Infodemic.

O projeto, que inclui ainda instituições como o King’s College de Londres, já mapeou ao menos 20 títulos conspiratórios sobre a pandemia disponíveis em inglês. Em português, O GLOBO encontrou com facilidade cinco exemplos de obras sobre a Covid-19, além de quatro outros livros com desinformação sobre temas como nazismo, islamismo e mudanças climáticas.

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Procurada, a Amazon removeu três de nove livros negacionistas brasileiros apontados pela reportagem. A retirada de livros após denúncia tem se tornado uma prática recorrente. Depois da invasão do Capitólio, em janeiro, por exemplo, a empresa retirou produtos relacionados ao QAnon, teoria conspiratória da extrema-direita americana.

Em nota, a Amazon informa que o site do Ministério da Saúde aparece sempre no topo das páginas de resultados de pesquisas por livros relacionados ao coronavírus e que remove títulos que não estejam de acordo com suas diretrizes de conteúdo. “Investimos tempo e recursos significativos para aplicar essas diretrizes, usando uma combinação de machine learning, automação e equipe de revisores”, afirma.

Na prática

Estudiosos ouvidos pela reportagem foram unânimes em reconhecer que impedir a Amazon de comercializar títulos negacionistas seria censura. No entanto, todos concordam que a empresa deveria tomar medidas que freassem a propagação de conteúdo anticientífico. Pablo Ortellado , colunista do GLOBO e pesquisador das redes sociais, afirma ser indefensável que o algoritmo não diferencie livros sérios e falaciosos e recomende tanto uns quanto outros.

— Há coisas, que, apesar de legais, são antiéticas, ainda mais no meio de uma pandemia. Vender livros de teorias da conspiração mata pessoas indiretamente, tem impacto na saúde pública. Se a Amazon quer vendê-los, pelo menos, não deve recomendá-los — diz Ortellado. Ele afirma que, além de responder por parte expressiva das vendas de livros no país , a Amazon se comporta como uma rede social, conectando os clientes a seus interesses.

Página de venda do livro 'Covid-19: A Fraudemia', na Amazon Foto: Reprodução / Reprodução
Página de venda do livro 'Covid-19: A Fraudemia', na Amazon Foto: Reprodução / Reprodução

Em suas “Diretrizes”, a Amazon afirma que o “acesso à palavra escrita é importante, incluindo conteúdo que pode ser considerado censurável” e que se compromete a remover materiais que proporcionem “uma experiência ruim ao cliente”. A empresa afirma considerar “cuidadosamente os tipos de conteúdo” disponibilizado nas lojas e que não comercializa nada que viole “leis e direitos de propriedade” (plágio) e livros que promovam o ódio, a exploração sexual, o terrorismo “ou outro material que consideremos impróprio ou ofensivo”.

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Os livros do catálogo da Amazon podem chegar à loja virtual mesmo sem terem uma editora, uma vez que ela é aberta a obras publicadas por iniciativa dos próprios autores. Entre os exemplos localizados pela reportagem estavam alguns que usaram a plataforma brasileira de autopublicação Clube dos Autores, que facilita o processo de inserção no mercado editorial.

Em nota, o Clube dos Autores disse que, por ser uma plataforma de autopublicação e não uma editora, não desempenha “papel de curadoria” nos títulos que disponibiliza. No entanto, os autores dos livros identificados pelo GLOBO foram notificados e, segundo a plataforma, podem ser banidos.

Impulso

Dentro da Amazon, mesmo livros assinados por autores pouco conhecidos, podem ter o seu sucesso impulsionado pelo algoritmo do site, que é hábil em recomendar os produtos para os compradores com maior potencial.

— Quem escreve o algoritmo está trabalhando com mecanismos psicológicos nossos, como a compulsão para comprar e a vontade de reafirmar nossas ideias — analisa Leandro Tessler, professor da Unicamp que faz parte do Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais. — Eles querem maximizar as tuas compras. O que acabam fazendo é criar bolhas. Eles sabem os livros que você compra e passam a recomendar livros similares aos já buscados. O algoritmo vai se adaptando por meio do aprendizado de máquina, que é uma técnica para identificar padrões.

Com recursos como esses, Alessandro Loiola, que assina “Covid-19: a Fraudemia”, esgotou a primeira tiragem de seu livro. O médico, que é cético quanto ao distanciamento social e ao uso de máscara como estratégias para combater a epidemia e se recusou a tomar vacina contra o coronavírus, contou à reportagem que já vendeu mil cópias.

— Durante mais de um ano trabalhei em São Sebastião e Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, em unidades de pronto-atendimento. Trabalhava na sala de emergência justamente recebendo os pacientes com os quadros mais graves de Covid — diz Loiola, que conta ter receitado o tratamento precoce com remédios como cloroquina.

O uso do kit de medicamentos também é o principal assunto de suas postagens nas redes sociais. No Twitter, onde tem 125 mil seguidores, compartilha um link para inscrição em um canal no Telegram e outro para pedidos de autógrafos no livro, via WhatsApp. No YouTube, porém, sua conta foi deletada recentemente por violar as regras do site com conteúdo desinformativo.

Professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em ética, Eugênio Bucci afirma que quem vende livros negacionistas deveria incluir o aviso, o mais didático possível, explicando que se trata de um produto sem respaldo científico. Algo como o “este produto causa câncer” presente nos maços de cigarro. No entanto, Bucci reconhece que o efeito disso seria mínimo.

— Essas pessoas não se incomodam com o fato de um sistema dizer para elas que isso é falso, porque estão engajadas num movimento anti-establishment e isso pode até mobilizá-la mais — adverte.

Procurados pela reportagem, o SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e a CBL (Câmara Brasileira do Livro) não quiseram se manifestar.