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A antipoesia de Nicanor Parra chega enfim ao Brasil

Dez meses após sua morte, aos 103 anos, chileno conhecido pelo uso de gírias e coloquialismos é traduzido no país
O poeta Nicanor Parra em sua casa, em Las Cruces, em janeiro de 2004 Foto: Maurício Palma / El Mercurio/GDA
O poeta Nicanor Parra em sua casa, em Las Cruces, em janeiro de 2004 Foto: Maurício Palma / El Mercurio/GDA

No dia 5 de dezembro de 2014, acompanhada do escritor Alejandro Zambra, a arquiteta paulistana Joana Barossi bateu à porta do poeta Nicanor Parra (1914-2018) em Las Cruces, no litoral chileno, cheia de perguntas anotadas em um caderno. Joana traduzia Parra para o português e queria confirmar o significado de algumas palavras e expressões — a poesia do chileno se aproxima da linguagem das ruas, de um lirismo irônico e absurdo.

O caderno continuou fechado. Joana preferiu ouvir o poeta falar de sua irmã, Violeta Parra (1917-1967), cantora popular que se suicidou, e de algumas mágoas, como as acusações de conivência com a ditadura chilena (ele nunca se exilou) e o Prêmio Nobel que ele nunca ganhou (por culpa das conspirações de uma ex-namorada sueca, suspeitava ele). Joana reparou que Parra marcava o ritmo de sua fala com os dedos da mão direita, como quem conta as sílabas de um verso, e roubou uma caneta Bic da mesa do poeta.

Chave da investigação

Quando Zambra contou a Parra que Joana era sua tradutora, o poeta respondeu que não lia traduções, que elas deviam ser “expropriações revolucionárias” e não mais lhe pertenciam. Na última quinta-feira, Joana apresentou em São Paulo o resultado de suas expropriações revolucionárias: “Só para maiores de cem anos”, uma antologia bilíngue de poemas de Parra traduzidos em parceria com o editor e poeta Cide Piquet. É a primeira edição da obra de Parra no Brasil.

— Eu sempre gostei muito do Parra. Viajei ao Chile quatro vezes com uma pergunta latejando na minha cabeça: o que acontece nesse país em que a poesia é tão fervilhante e está no ouvido de todo mundo, um pouco como a música popular aqui? — disse Joana ao GLOBO. — O Parra era a chave dessa minha investigação.

A primeira viagem foi em 2010, quando Joana visitou lugares que Parra menciona em seus poemas e se enfiou em livrarias à procura de tudo o que ele já havia publicado. Em 2012, ela caminhou até a casa do poeta, avistou-o através da janela, “com aqueles cabelos arrepiados”, mas não teve coragem de bater à porta, onde se lia “antipoesía” em letras pretas, e deu meia volta. Em setembro de 2014, visitou um Chile em festa, que celebrava o centenário do poeta. E, em dezembro daquele ano, finalmente foi à casa de Parra.

Enquanto isso, no Brasil, Piquet começava suas “expropriações revolucionárias” de Parra para participar de um evento em homenagem aos 100 anos do chileno em São Paulo. Piquet é editor da 34, que publicou a antologia, e contou ao GLOBO que conseguir os direitos do poeta deu trabalho. A negociação começou em 2015, logo após a morte da agente literária espanhola Carmen Balcells, que cuidava da obra de Parra. O falecimento dela atrasou as tratativas.

Piquet passou de editor a tradutor quando Joana ficou grávida e precisou de mais um par de mãos para cumprir o prazo. Os dois apelaram para contatos chilenos para decifrar as gírias e o coloquialismo de Parra.

— No poema “Eu pecador”, ele diz: “Yo camarón, yo padre de família”. Que diabo é camarão no Chile? Para mim, “camarão” é um gringo queimado de sol — riu Piquet. — Uma amiga chilena me disse que camarão é quem anda para trás, e eu pensei: “caranguejo!”. E tasquei: “Eu caranguejo”. Parra é gostosíssimo de ler. São versos nada afetados ou livrescos.

Para a antologia, Joana e Piquet selecionaram 75 poemas de sete livros de Parra. Privilegiaram a “antipoesia”, ou seja, os poemas coloquiais e diretos que Parra passou a publicar a partir do livro “Poemas y antipoemas”, de 1954.

— Parra dá uns olés no tradutor, ele muda de assunto para confundir sua cabeça de propósito — disse Joana. — Ele descreve uma imagem bela e de repente aparece um nariz pingando sangue.

Joana não sabe onde foi parar a Bic que roubou de Parra. Suspeita que ela se perdeu no meio de um monte de canetas iguais.