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'A arte de morrer ou Marta Díptero Braquícero', de Bruno Ribeiro

Leia o conto que ficou em terceiro lugar no concurso Brasil em Prosa, promovido pelo GLOBO e pela Amazon com apoio da Samsung
Bruno Ribeiro, um dos autores vencedores do concurso Brasil em Prosa Foto: Divulgação
Bruno Ribeiro, um dos autores vencedores do concurso Brasil em Prosa Foto: Divulgação

Uma mosca tomba no meu prato com bife e batata frita. Agoniza. Bactérias. Díptero braquícero da família Muscidae. Poucos milímetros de comprimento. Pego o garfo e cutuco o inseto, escuto um chiado, feito televisão fora do ar. Coloração cinza no tórax, abdômen amarelado. Duas asas, uma delas levemente rasgada. Por isso agoniza. Olhos grandes, espaçados, vermelhos. Continua chiando, morrendo. Empurro-a com a faca, corto um pedaço da carne, separo, finco o garfo em três batatas e depois na carne. Deixo cair uma gota do sangue do bife em cima da mosca. Engulo o alimento, mastigo, admiro o esforço do inseto em tentar sair da bolha marítima avermelhada. Ao meu redor, no restaurante, não há ninguém. Exceto a garçonete gorda, cheia de espinha e depressiva. Não há ninguém. Reconheço os meus. É como uma doença visível, lepra. Os olhos caídos, o cheiro de cadáver, a expressão derrotista. Impossível não reconhecer uma depressão. Ela pergunta se eu quero mais alguma coisa. Vejo um crachá acima do seu peito gigante: Marta. “Não, Marta, obrigado”. Ela dá meia volta, carregando a bunda disforme e sua tristeza de volta para o balcão. Marta vive aprisionada dentro de uma bolha marítima avermelhada. A diferença dela para a mosca é que o inseto luta bravamente para sair, Marta já desistiu. Afogou-se. Vive por comodidade. É mais fácil respirar do que morrer. Se matar dá trabalho. Já tentei quatro vezes. Dá trabalho. É preciso ter coragem para fazer bem feito. Decido tirar a mosca da bolha. O chiado retorna, ofegante, como se ela estivesse afundando em um mar profundo e de repente alguém a socorresse. Como mais um pedaço de carne. Mastigo quatro fritas. Não pisco os olhos: a mosca tenta voar, cai. Tenta de novo, cai. Está nas fritas, buscando fôlego para uma nova empreitada.

“Marta.”

Ela vem carregando todo o peso do mundo.

“O que o senhor deseja?”

“Você sabia que as moscas ficam esfregando as patas por questão de higiene?”

Ela não responde.

“Os pelos das patas têm umas espécies de receptores de aroma e sabor. E daí que elas precisam estar sempre limpas para que elas possam farejar seus alimentos.”

Marta fica me encarando.

“Dizem que elas existem há cerca de 65 milhões de anos. Desde os tempos dos dinossauros.”

A mosca tenta voar novamente. Tomba na carne ensanguentada e mal passada.

Marta diz: “Como as baratas”.

“Como as baratas, Marta.”

Ficamos olhando um para o outro. Uma atmosfera opressora.

Encaro meu prato, ela também.

“Ela tá machucada?”

“Ela tá morrendo.”

“O senhor quer mais alguma coisa?”

“Elas atingem a maturidade sexual quando viram adultas. As fêmeas são montadas por trás pelos machos, sabia?

Só acasalam uma vez, mas guardam os espermas, botando ovos inúmeras vezes em vida. Ao longo da existência, uma fêmea pode colocar uns 900 ovos. É coisa pra caralho. Muito mesmo. Imagina, parir 900 pivetes, Marta?”

Ela ri.

“É muita coisa.”

“Você tem filho, Marta?”

“Uma menina.”

“Quantos anos ela tem, Marta?”

“14.”

“Ela gosta de insetos, Marta?”

“Você gostou do meu nome.”

“Achei lindo. Sabia que tem alguns tipos de moscas, como as de estábulo ou de chifre, que ingerem sangue humano ou de animais? O aparelho bucal delas tem algumas modificações pontiagudas, picam e perfuram a pele.”

“Dói?”

“Nunca fui mordido por uma, Marta.”

A mosca para de se debater. Ela aguarda a morte. Agoniza, mais próxima de lá do que daqui.

Só resta um pedaço de carne e duas fritas molengas. Marta continua parada, próxima do meu corpo, aguardando um pedido, a conta, o fim da refeição, uma chuva, trovão, sol, que a madrugada passe e ela vá para casa cuidar do café da manhã da filha, um meteoro, acidente de carro, ácido, uma lua torta no céu, um solilóquio de nuvens negras, infarto de enxofre, engasgo, uma calamidade que invada a televisão por dias e mais dias, um algo material, uma esperança. Mas nada acontece. Enfio o garfo na carne e nas batatas, observo a mosca solitária no prato. Mastigo.

“Morreu?”

“Engraçado, faço essa pergunta para a maioria das pessoas que conheço.”

“E elas estão vivas.”

“E elas estão vivas, Marta.”

O garfo entra no tórax cinza da mosca. Rito de perfuração. A enfio na boca, sinto o crocante, o bater de asas para provar que ela resiste aos meus dentes, chiado, sobrevivência; ela desce, a carcaça escorre pela glote e, após algumas horas, será desovada pelas minhas fezes. Um féretro digno para um díptero braquícero da família Muscidae.

“As fêmeas são montadas por trás pelos machos?” Ela pergunta, trôpega.

“Você gosta?”

“Acho que sim.”

“Ela morreu, Marta.”

“Você a engoliu.”

“Quer?”

“Acho que sim.”

“Posso te beijar, Marta?”

“O senhor deseja mais alguma coisa?”

“Não, Marta.”

“Então me beija mesmo.”

Do lado de fora deste restaurante sem nome, atolado em um bairro esquecido por Deus, qualquer um que passasse na frente da vidraça veria duas moscas gigantes e em decomposição se acasalando desesperadamente como se o mundo no dia seguinte fosse deixar de existir. E talvez deixasse.

O mineiro Bruno Ribeiro nasceu em 1989, é tradutor, escritor, roteirista e autor do livro de contos “Arranhando paredes” (Bartlebee, 2014).