Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

'A indignação é uma alavanca de transformação do mundo', defende Monja Coen

Isolada há dez meses, budista lança 'O bom contágio' e diz que negar a pandemia é fruto de egoísmo
Monja Coen critica a condução do combate à pandemia e afirma: 'É o momento de defender o SUS' Foto: Divulgação
Monja Coen critica a condução do combate à pandemia e afirma: 'É o momento de defender o SUS' Foto: Divulgação

RIO — Trancada em seu templo desde 16 de março do ano passado, Monja Coen costuma parar à janela para observar o movimento na praça em frente. A única vez que saiu foi para operar uma apendicite — episódio que conta em seu novo livro, “O bom contágio”, lançado no dia 25 pela Best-Seller. A obra é uma de várias que a budista escreveu ao longo do isolamento, e se dedica a pensar no que, de positivo, pode ser compartilhado entre as pessoas neste momento difícil.

Redescoberta: Livro de 1851 sobre combate à febre amarela traz lições para tempos de Covid-19

Além das práticas meditativas e do cultivo do amor e da empatia, no entanto, Monja Coen também chama a atenção para a necessidade da luta política por direitos — sejam eles trabalhistas, de equidade racial ou de acesso a um sistema universal de saúde. Para a religiosa, “a indignação é uma alavanca” de transformação, desde que não venha acompanhada da raiva — sentimento que ela diz não sentir ao ver as aglomerações que se avolumam pelo país .

'O bom contágio' será lançado pela Best Seller nesta segunda-feira Foto: Divulgação
'O bom contágio' será lançado pela Best Seller nesta segunda-feira Foto: Divulgação

Em entrevista ao GLOBO pelo Zoom, a monja descreveu o que sente depois de dez meses de isolamento, sua avaliação quanto ao negacionismo científico e à forma como o combate à Covid-19 vem sendo conduzido, e seu próprio processo de luto pela perda de uma amiga querida.

A ética da imunização: Fila da vacina põe em xeque os privilégios  no país do 'cercadinho'

A senhora permanece em isolamento desde março. Como tem sido essa experiência?

A gente vai cansando. Fico olhando o pessoal na praça, pensando: “Ah, como eu queria estar com eles”. Faço 74 este ano. Além disso, moro com minha discípula, que também é do grupo de risco. A questão não é nem morrer, mas é ter leito hospitalar disponível para todos. A minha ideia é procurar não usar os órgãos públicos. Eu não tenho plano de saúde, uso o SUS.

E como a senhora avalia o atendimento do SUS? A senhora apoia as campanhas em defesa dele?

Com certeza. Nós temos que estimular que o SUS funcione. O que vai nos salvar neste momento é que nós temos postos de saúde públicos no país inteiro. Acho que a gente tem um sistema de saúde muito bom, mas estavam fazendo uma política de desmonte até a pandemia começar. Era uma vergonha, não mandavam esparadrapo, gaze, nada. Aí chega o paciente e não tem como atender. Era uma campanha para as pessoas quererem a privatização, e eu não concordo com isso. Não estou de acordo com esses convênios de saúde, acho um abuso. O SUS não é para pobre, é para o ser humano. É o momento de a gente defendê-lo.

Martinho da Vila dá receita da felicidade: 'Não curto tristeza, deleto tudo e fim de festa'

Na quarentena, a senhora escreveu diversos livros, como “Vírus”, publicado de maneira independente, e outros que ainda estão em edição. De onde surgiu “O bom contágio”?

Uma editora me convidou. Ela me pediu para falar de contágio, mas abordando coisas boas. Existe a possibilidade de contaminar as pessoas com respeito, com amor, com mais atenção ao fato de que estamos ligados a tudo. Acredito nessa capacidade humana que é a empatia. Nós não precisamos ser idênticos para compreender um ao outro, porque pertencemos todos à família humana.

Quando falo do bom contágio, ele também vai falar de sustentabilidade, de respeito à vida silvestre. Essa pandemia nos faz lembrar que a gente tem que tomar cuidado para mexer na natureza. Tem coisas muito interessantes sendo descobertas e feitas agora. A tecnologia pode dar um impulso maravilhoso para o futuro, e nós somos inteligentes o suficiente para usarmos essa tecnologia a nosso favor.

Como promover esse bom contágio?

Pelas redes sociais, pelo Facebook, pelo Zoom... Tudo o que temos agora, podemos usar para espalhar coisas boas. Estamos vivendo como se estivéssemos na escuridão, com medo, mas precisamos ter coragem. A vida são possibilidades, e nós podemos criar novas possibilidades. Aqui em São Paulo, por exemplo, tem um movimento incrível de meninos fazendo entregas, pessoas que perderam o emprego e estão se reinventando.

Quando a vacina chegar: Personalidades contam seus planos e desejos

Mas esse movimento também vem acompanhado por uma precarização do trabalho…

É verdade. É uma função nova, por isso eles têm que se sindicalizar. Não podem ficar quietos. O mundo está funcionando por causa desses meninos; eles precisam ser mais valorizados. Por causa deles, nós estamos com saúde em casa. É preciso reivindicar, mas sem braveza, sem raiva. Manifestações públicas são muito importantes, mas não xingando os outros. Na hora que você ofende alguém, você rompe a possibilidade de diálogo.

A senhora fica com raiva ao ver as pessoas saindo para se divertir, como se já estivesse tudo bem?

Eu fico com um pouco de inveja, talvez. Eu entendo o desespero de uma pessoa que mora num lugar pequeno, que quer namorar, ir a festas, que ficou bastante tempo em casa e chegou a seu limite. Mas nós podemos evitar que seja maior a taxa de mortes. Quando a gente fala que precisa usar máscara, fazer melhor o distanciamento, é para que todo o mundo possa ser atendido nos hospitais. Acho que a tendência, infelizmente, é de que as pessoas que estão negando a pandemia fiquem doentes, e que pessoas que eles gostem venham a morrer. Não é rogar praga. Elas acabam ficando doentes e passando a doença para outras pessoas.

Especialistas debatem: O que as festas de fim de ano lotadas dizem sobre nossa sociedade

Essa negação é fruto de um egoísmo?

Sim. É como uma criança que não quer ver o que vai acontecer, e fecha os olhos porque tem medo. Se eu não olhar, não acontece. Isso é o negacionismo. Infelizmente, a doença existe. Felizmente, a ciência também, e tivemos um grande desenvolvimento científico neste período. Eu confio e acredito na ciência. Você só cura uma coisa se reconhecer que ela existe. Outro dia, o vice-presidente Mourão disse que não há racismo no Brasil. Pode ser que ele não tenha dentro de si mesmo. Mas o racismo no Brasil existe e, por isso, temos que fazer campanhas contra. Quando você nega o problema, não há cura.

A senhora acredita que houve descaso no enfrentamento à pandemia?

Teve. Era para já estarmos vacinando as pessoas desde dezembro. Além disso, criou-se uma desarmonia com outros países. Por isso existem pessoas especializadas em conversar: chamam-se diplomatas. Mas se você põe uma pessoa que não está preparada para o cargo, ela acaba perdendo a paciência e falando o que não devia.

Algumas pessoas sentem raiva pela forma como a situação está sendo conduzida. O que fazer para transformar esse sentimento em algo bom?

Meditação e respiração consciente. É importante você sentir o que está sentindo. Não se pode negar a raiva, e a indignação é uma alavanca de transformação do mundo. Eu respiro a minha raiva e solto devagar pela boca. Depois, penso por que essa raiva me pegou e o que posso fazer para que a situação seja diferente. Acredito muito na meditação como um processo de transformação social, política e econômica, porque a pessoa que desperta percebe que nós estamos interligados a tudo e a todos. Que somos a vida da Terra. E que se cuidarmos de tudo que está à nossa volta, estamos cuidando de nós.

'Cercados': Documentário do Globoplay mostra o trabalho da imprensa na cobertura da pandemia da Covid-19

É inevitável não sofrer com a perda de pessoas queridas nessa pandemia. A senhora teve perdas próximas? Que conselhos dá para quem está passando por um luto?

Luto é importante. Ele existe e nós temos que passar por ele. Não é dormir, não é fugir. É saber que vou ter tristeza, vou sentir falta, mas entender que aquela pessoa vive em mim. Durante esse período, minha professora de ioga se foi — por outro problema, não de Covid-19. Chorei como há muito não chorava, sozinha numa mesa, de soluçar. Fiquei muito tempo sem conseguir fazer ioga, e ainda dói quando eu penso nela. Imagine, uma pessoa que você vê duas vezes por semana, anos e anos seguidos… Mas a gente encontra meios de se despedir. No meu caso, ofereci incenso e rezo todos os dias no meu altar. A gente precisa entender que tudo que existe morre, e que não perdemos aquela pessoa que partiu. Mesmo morrendo, os vínculos não são cortados.