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Em ‘O gigante enterrado’, Kazuo Ishiguro se arrisca no gênero da fantasia

Escritor ambienta romance em mundo habitado por fadas, ogros, gigantes e dragões

Novato no gênero “fantasia”, Kazuo Ishiguro diz que escreveu “O gigante enterrado” influenciado por Homero, filmes de samurai e westerns hollywoodianos
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Ryan Stevenson
Novato no gênero “fantasia”, Kazuo Ishiguro diz que escreveu “O gigante enterrado” influenciado por Homero, filmes de samurai e westerns hollywoodianos Foto: Divulgação / Ryan Stevenson

SÃO PAULO — Depois de passar por vários gêneros em seus sete romances, Kazuo Ishiguro entra agora numa seara popular, especialmente entre os mais jovens. Talvez por isso o autor, nascido no Japão há 60 anos e radicado na Inglaterra desde os 5, tenha demorado uma década para completar a fantasia medieval “O gigante enterrado”, que a Companhia das Letras lança este mês no Brasil, depois de sua publicação na Europa e Estados Unidos.

De sua casa em Londres, Ishiguro conta que carrega um caderno de anotações, onde escreve ideias que porventura possam lhe ocorrer. Foi em um desses que ele anotou há muito tempo a premissa de seu novo romance: alguém ou alguma coisa causa perda de memória a uma sociedade ou à população de um país, e as pessoas têm de decidir se querem destruir aquilo ou aquela pessoa que lhes causa esse mal ou se querem permanecer sem as lembranças que perderam.

— Eles percebem que se as memórias voltarem coisas terríveis podem acontecer — disse ele, em entrevista exclusiva ao GLOBO. — Essa é a história. Pensei nisso em diversas formas, até como ficção científica futurista, numa perda memória causada pelos telefones celulares.

AUTOR DE 'VESTÍGIOS DO DIA'

O autor de “Os resíduos do dia”, que lhe valeu o Man Booker Prize de 1989 e foi adaptado para o cinema com o nome de “Vestígios do dia” (1993, em 2015 o livro passaria a ter o mesmo nome do filme), e de “Não me abandone jamais”, finalista em 2005 do mesmo prêmio, diz que o gênero não importa quando prepara um novo romance:

— Como escritor, eu sinto muita liberdade, lanço mão do que estiver ao meu alcance.

Arte da capa do novo livro de Kazuo Ishiguro Foto: Divulgação
Arte da capa do novo livro de Kazuo Ishiguro Foto: Divulgação

Ishiguro se compara a um cineasta em busca de locações adequadas para contar a história que quer. Antes de optar por uma Inglaterra mítica, situada por volta do século XV e habitada por fadas, ogros, gigantes e dragões, pensou em várias outras opções.

— Essa história pode ser contada em uma realidade alternativa, como em Ruanda. Outro país em que pensei foi a França, na época da ocupação nazista. O Japão também tem um período complicado durante a Segunda Guerra Mundial. Até a Bósnia, no período da Guerra dos Bálcãs, me passou pela cabeça — explicou ele.

Em todos esses casos, populações inteiras foram vítimas de guerras mundiais, civis e ditaduras. A ideia do escritor era mostrar e discutir como, após os eventos trágicos, essas pessoas reorganizavam suas vidas em comum.

— Sociedades muitas vezes precisam esquecer de coisas para continuar seguindo em frente. Especialmente se um país passa por um período traumático como uma guerra, conflito civil ou ditadura. Não estou dizendo que as pessoas devam esquecer ou se lembrar das coisas necessariamente. Essa é uma questão muito mais complicada, mas existe um movimento no sentido de se omitir para poder sobreviver.

CASAL DE IDOSOS CONDUZ A TRAMA

Foi quando surgiu em suas mãos uma novela de cavalaria do século XIV, “Sir Gawain e o Cavaleiro Verde”, poema épico que descreve uma Inglaterra sombria e depauperada pela guerra, habitada por seres errantes e moribundos. A obra surgiu, segundo quase todos os estudos disponíveis, após a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), quando os ingleses foram expulsos da França, e em meio à crise agrícola e à peste negra na Europa.

“Essa coisa de lembrar e esquecer sempre me fascinou... Era sobre isso que eu queria escrever”

Kazuo Ishiguro
Escritor

— Eu precisava de alguma razão para que as pessoas sofressem de perda de memória, algo mais sinistro do que uma rede de telefones celulares... — brinca o escritor.

Pesquisando, Ishiguro descobriu que naquele contexto histórico poucas pessoas sabiam o que estava acontecendo. Ele havia encontrado o ambiente no qual colocaria seus dois protagonistas, o casal de idosos Axl e Beatrice, que saem em busca de seu filho perdido sem lembrar ao certo as feições dele. A Grã-Bretanha está dividida pela guerra entre bretões e saxões, e sem o comando do rei Artur. Entre outros personagens, eles encontrarão Sir Gawain, que os protegerá e guiará por aquelas terras inóspitas, sobre as quais paira como um grande encanto a sombra do esquecimento.

— Essa coisa de lembrar e esquecer sempre me fascinou... Era sobre isso que eu queria escrever.

MUNDO DA FANTASIA

“O gigante enterrado” entra por uma seara dominada por nomes como Neil Gaiman e George R.R. Martin, mas Ishiguro diz que não se sente nem intimidado nem em território estranho. Gaiman, aliás, não só resenhou o livro para o jornal americano “The New York Times” como também participou de um debate com o autor sobre literatura fantástica, transcrita e publicada nos Estados Unidos e na Inglaterra.

“Na verdade, não li nenhum livro de George R.R. Martin, nem assisti ainda à série “Game of thrones”. Mas comprei a primeira temporada. Estou mais interessado nas possibilidades literárias que a fantasia me proporcionou”

Kazuo Ishiguro
Escritor

— Acho que estou muito mais interessado nesse tipo de livro agora. Na verdade, não li nenhum livro de George R.R. Martin, nem assisti ainda à série “Game of thrones”. Mas comprei a primeira temporada. Estou mais interessado nas possibilidades literárias que a fantasia me proporcionou.

O escritor diz que o intercâmbio com o mundo da fantasia e com autores como Gene Wolfe e Tim Powers, dois nomes conhecidos entre os iniciados, tem sido interessante. Mas ele confessa que não procurou ler nada do gênero enquanto escrevia o livro.

— Eu gosto mais de Homero, da “Ilíada” e da “Odisseia”. São leituras assim que me inspiram. Eu também sempre gostei de filmes de samurai, e muitas vezes eles lutam contra dragões e demônios. Muitas histórias folclóricas japonesas estão repletas dessas figuras míticas. Também gosto muito de westerns hollywoodianos, especialmente os de John Ford, como “Rastros de ódio”, ou de Sam Peckinpah, como “Meu ódio será sua herança”, aquela ideia do velho pistoleiro que vem restaurar antigos valores.