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'A mentalidade da escravidão segue agora no sistema carcerário', diz vencedor do Pulitzer Colson Whitehead

Autor americano lança 'O reformatório Nickel', sobre crimes contra negros num centro de reeducação juvenil na Flórida
O escritor e ensaísta Colson Whitehead em Paraty para a Flip 2018 Foto: Márcia Foletto / O Globo
O escritor e ensaísta Colson Whitehead em Paraty para a Flip 2018 Foto: Márcia Foletto / O Globo

Em 2012, o departamento de antropologia da Universidade do Sul da Flórida encontrou dezenas de covas clandestinas fora dos limites da Arthur G. Dozier School For Boys, um reformatório juvenil que havia sido fechado no ano anterior depois de funcionar por mais de um século. O levantamento da época sobre internos assassinados sem registro documentou quase 100 corpos. Esse caso foi o estopim para “O reformatório Nickel” (Harper Collins Brasil), novo romance do escritor americano Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer por “The underground railroad — Os caminhos para a liberdade” (2016).

— Alguns anos atrás, no verão de 2014, tivemos vários incidentes de brutalidade da polícia, com jovens negros assassinados por policiais, e parecia que estávamos num mau lugar como país. E lembrei de uma matéria sobre as escavações em Dozier. Fiquei horrorizado com a história e impressionado como ela não ganhou a repercussão nacional que merecia. Era uma escola onde crianças foram mortas e abusadas, um horror — conta Whitehead, por telefone.

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A trama, passada no início da década de 1960, acompanha o ingênuo e idealista Elwood Curtis, um adolescente abandonado pelos pais e criado pela avó. Influenciado por um LP com discursos de Martin Luther King, ele passa a frequentar marchas e protestos pelos direitos civis. Quando seguia para seu primeiro dia na universidade, contudo, ele pega carona num carro roubado e, injustamente, é preso e enviado ao Reformatório Nickel.

— Como cresci depois dos movimentos civis, eu achava que esses direitos já estavam ganhos. Aprendemos sobre o doutor King na primeira série. Então, resolvi falar sobre seu legado no livro, os boicotes, as marchas — diz o autor, que não realizou entrevistas com sobreviventes da Dozier. — Criei meus próprios personagens, mas conheci depois algumas pessoas que passaram por lá, inclusive um que mora a cinco blocos da minha casa, em Nova York.

SISTEMA CARCERÁRIO

No romance, Elwood sofre para se adaptar a uma realidade brutal de segregação e racismo também dentro da escola. Após ser espancado por guardas ao tentar ajudar um menino que apanhava, ele faz amizade com Turner, um rapaz mais maduro e malandro que planeja fugir. Essa realidade carcerária de uma grande maioria de afro-americanos presos segue a mesma nos dias de hoje, tanto nos EUA quanto no Brasil.

— A mentalidade de manter negros em correntes na escravidão segue agora no sistema de encarceramento. Estive no ano passado em Paraty, na Flip, e algumas pessoas falavam que não havia problema de racismo no Brasil, mas apenas de classe — gargalha Whitehead, fazendo questão de demonstrar seu sarcasmo. — Ainda tem muita gente que não entende que dinheiro e raça andam juntos quando não há avanços sociais.

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Segundo o escritor, esses reformatórios supostamente utilizados para reeducação servem apenas para “manter a estrutura de poder e a desigualdade”:

— É assim nos campos de refugiados, nas residências para jovens americanos nativos do Canadá, nas histórias dos orfanatos da Irlanda. São todos centros onde ocorreram abusos, e isso indica a cultura da impunidade, na qual os poderosos podem oprimir os mais fracos.

Em vez de explorar realidades alternativas e elementos fantásticos como fez em suas outras obras, influenciadas por nomes tão distintos como Gabriel García Márquez e Stephen King, “O reformatório Nickel” segue a cartilha do realismo.

— Cresci inspirado por livros de ficção científica e de terror, depois veio o realismo fantástico. Mas agora quis ficar perto dos garotos para revelar os horrores do dia a dia deles. Precisava narrar esse capítulo doloroso da história americana da maneira mais crua possível — explica.

SÉRIE DE BARRY JENKINS

Crítico do governo ultraconservador de Donald Trump, Whitehead escreveu o novo livro depois da eleição do republicano.

— Quando escrevi “The underground railroad”, sobre escravidão e supremacia branca, vivíamos na era Obama. Os que temiam um mundo em mudança, 51% dos eleitores, votaram no Trump. Os racistas e xenófobos temem pelo progresso que houve em termos de igualdade para mulheres e nas relações raciais. Foi um grande passo atrás após muitos avanços. Mas tem sido assim em todo o mundo, seja aqui, no Brasil, na Hungria ou na Polônia.

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Graduado em Harvard, o escritor trabalhou no jornal “Village Voice” antes de se tornar romancista. Para ele, apesar do pessimismo, o jornalismo e a literatura são peças importantes para conter o autoritarismo:

— O jornalismo é nossa primeira linha de defesa para saber sobre corrupção, negócios escusos e tramas que acontecem por trás das portas. A literatura pode funcionar da mesma maneira, num certo nível. Meus dois últimos livros falam de absurdos da cultura americana, mas são poucos os que leem hoje em dia e têm a cabeça aberta para aprender.

Capa do livro 'O reformatório Nickel', de Colson Whitehead Foto: Divulgação
Capa do livro 'O reformatório Nickel', de Colson Whitehead Foto: Divulgação

Enquanto a adaptação de Barry Jenkins (“Moonlight”) para “The underground railroad” não se transforma em série na Amazon, Whitehead já trabalha em seu novo romance, ainda sem título.

— O pessoal da série conversou comigo, me mandou fotos do set, mas não estou participando do projeto. Meu próximo livro se passará nos anos 1960, sobre crimes no Harlem.

Autor best-seller da lista do “The New York Times”, elogiado por gente como Oprah Winfrey e Barack Obama, e também vencedor do National Book Award, o premiado autor tem duras críticas ao mercado editorial, mesmo após tanto reconhecimento por seu trabalho.

— Honestamente, ainda há uma barreira de brancos dominando as grandes editoras e publicações, e muitos não gostam de histórias de negros, gays ou mulheres. Acham que não são “comerciais”. Quando comecei, me apegava à esperança de escrever bons livros. Lembro que li o primeiro capítulo de “O homem invisível”, do Ralph Ellison, no ginásio. Fiquei fascinado. Minha reação foi: “Que cara mais maluco!”. Ali, vi que eu também podia ser um escritor negro esquisitão.

SERVIÇO

“O reformatório Nickel”

Autor: Colson Whitehead. Tradução: Rogerio W. Galindo. Editora: Harper Collins Brasil. Páginas: 240. Preço: R$ 54,90.