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'A pediatra': em ótimo livro, Andréa del Fuego apresenta médica incapaz de criar laços

Em seu terceiro romance, autora discute questões como ética, impunidade e julgamentos com base em aparência
SC EXCLUSIVO / a escritora Andréa del fuego Foto: Erica Fujito / Divulgação
SC EXCLUSIVO / a escritora Andréa del fuego Foto: Erica Fujito / Divulgação

Em “A pediatra”, terceiro romance de Andréa del Fuego, a escritora retorna ao gênero que conferiu a ela, em 2010, o Prêmio Literário José Saramago , e à escrita áspera, direta e seca que lhe é característica. Nesse livro, especificamente, a linguagem parece refletir a personalidade da protagonista da trama, Cecília, uma médica que não cria laços afetivos com nada nem com ninguém, e cujas ações, ainda que delirantes, são absurdamente pragmáticas e visam tão somente satisfazer seus interesses mais imediatos, muitos deles frívolos e antiéticos.

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Não há respiro para o leitor, pois já nas primeiras páginas ele é apresentado a uma pediatra que não vê diferença entre a morte de um gambá e a complicação com um bebê prematuro: para ela, ambas são apenas acontecimentos aborrecidos dos quais pretende se desvencilhar, trancando-se, por exemplo, em seu consultório com uma placa do lado de fora da porta avisando que está em atendimento. Essa é a trama vertiginosa de uma mulher sem nenhuma ética pessoal ou profissional. Se ela não tem nenhuma empatia pelos pacientes, pelo menos segue os protocolos, como diz orgulhosa: “ali tinha uma mulher que não ama criança e nem por isso deixava de cumprir com a ética médica, jamais mediquei errado, ela que me respeitasse, estava diante da civilização”.

Crítica à superficialidade

Em tempos de escândalo envolvendo médicos e planos de saúde que receitavam (ou receitam) e distribuíam (ou distribuem) medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, o orgulho sentido pela médica da ficção de Del Fuego parece fazer algum sentido. O fato é que, sem nenhuma vocação, a única preocupação da protagonista do romance é fazer bem “o feijão com arroz”, ou seja, adotar “procedimentos que qualquer pediatra faz”. Assim, pelo menos, como ela afirma, esconde sua inaptidão e garante que não venha a ser processada.

Quanto aos pacientes, esses são descritos de forma superficial: uma mãe com a filha, a babá com a criança etc. Ou são descritos como coisas: “o prematuro nasceu via cesárea de emergência com vinte e três semanas, peguei aquele pão pequeno, quente e vermelho, sem unhas, sem cílios, cumpri à risca todos os protocolos indicados para tal desfecho”. Só os protocolos importam.

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A propósito, a pediatra é contra os partos naturais, que exigiriam dela a paciência que não tem e a busca por novos conhecimentos pelos quais não tem o menor interesse. Ainda assim, ela decide investigar, não como médica, mas como “espiã”, como são feitos os partos humanizados. Seu único objetivo nessa empreitada é poder desqualificar o trabalho de um colega, favorável a esse tipo de procedimento, e das doulas que começam a lhe tirar pacientes.

Vale destacar que, em seu livro, Andréa del Fuego não faz apologia de nenhum tipo de parto; ao contrário, ela parece apontar nas entrelinhas da narrativa que essa é uma escolha que cabe à parturiente.

Outro tema sensível que vem à tona no livro é o aborto, o qual é tratado com a frieza típica da personagem principal. A médica, que se diz contra o aborto, indica o procedimento à empregada, pois prefere que a serviçal se mantenha no emprego sem filhos: “Por que você não tirou?, eu encaminho, ainda dá. Nem pensar, dona Cecília. Eu também não gosto, não trabalho com obstetra que faz, mas a mãe vai embora tranquila, sem ver o fim, é o profissional que cuida do desfecho, colocamos o feto num saco vermelho escrito ‘peças anatômicas’, quando tem menos de meio quilo vira resíduo de serviço de saúde”.

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A pediatra faz uma crítica à superficialidade com que julgamos as pessoas e as profissões. Como diz a protagonista, para impor respeito basta o jaleco branco e uma boa aparência: “Atendo com jaleco alvejado, cabelo limpo, volto para minha casa sem alteração que tenha ousado nascer no consultório, corto minha gastura de doença com um banho”.

Ainda que a médica despreze sua profissão, ela se vale de seu status para ter credibilidade em diferentes espaços: “deu meu nome, devia ter dado a minha profissão que, naquele ambiente, era um lança-chamas a incinerar qualquer obstáculo, professorinha nenhuma fecha a porta para uma pediatra”.

A pediatra é acima de tudo um livro sobre o desprezo de quem tem poder por aqueles que estão em posição inferior, é a certeza da impunidade de quem pode tudo porque a posição social lhe permite. Quando a protagonista cogita adotar uma criança, ela está segura de que seu “perfil à prova de bala furara a fila de espera, boas condições de formar ninho íntegro e confortável”. No entanto, ela não perderia uma noite de sono pelo filho adotivo e, caso se arrependesse, pensaria que foi “enganada pela triagem”, que escolheu errado.

*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Ascensão: contos dramáticos” e “Cem encontros ilustrados”

Capa do livro "A pediatra" Foto: Divulgação
Capa do livro "A pediatra" Foto: Divulgação

“A pediatra” Autora: Andréa del Fuego. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 160.

Preço: R$54,90. Cotação: ótimo.