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Alejandro Zambra: 'Depois de derrubar a Constituição de Pinochet, precisamos inventar uma nova melodia, coletiva e dançante'

Em seu novo romance, 'Poeta chileno', escritor retrata a relação entre um padrasto seu enteado para refletir sobre a resistência de sua geração a figuras de autoridade
O escritor chileno Ajeandro Zambra: "É um lugar tão difícil, tão esquisito, o do padrasto. Quem aceita ocupar o lugar de pai de um filho alheio aposta tudo o que tem" Foto: Mabel Maldonado / Divulgação
O escritor chileno Ajeandro Zambra: "É um lugar tão difícil, tão esquisito, o do padrasto. Quem aceita ocupar o lugar de pai de um filho alheio aposta tudo o que tem" Foto: Mabel Maldonado / Divulgação

Em seu primeiro romance, "Bonsai", publicado em 2006, o escritor chileno Alejandro Zambra seguiu o conselho do argentino Jorge Luis Borges, que dominava como ninguém as formas breves: escrever como quem redige o resumo de um texto já escrito. “Escrever é como cuidar de um bonsai, pensei então, e penso agora: escrever é podar a ramagem até tornar visível uma forma que já estava lá”, afirmou Zambra num ensaio no qual recordava a escrita do romance. Depois de “Bonsai”, ele continuou a publicar livros enxutos e festejados pelos críticos, nos quais reflexões sobre a literatura se misturavam às memórias da ditadura chilena. O mais longo deles, "Meus documentos", tem 161 páginas na edição que a Companhia das Letras lança este mês e que integra o volume “Ficção (2006-2014)”. Os livros anteriores do escritor chilleno haviam sido publicados originalmente pela finada Cosac Naify e pela Planeta.

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Em algum momento, porém, Zambra deixou de lado o conselho de Borges. Seu novo romance, “Poeta chileno” tem 432 páginas! Se antes ele resumia cenas, “em vez de somar, subtraía”, “completava dez linhas e apagava oito”, em “Poeta chileno”, usou a estratégia oposta. O narrador bonachão não economiza nos detalhes nem se incomoda em interromper a ação para escavar histórias pitorescas do passado dos personagens, como faziam seus pares no século XIX, mas sem o decoro daqueles tempos.

— Peço desculpas, publicar livros curtos era muito mais elegante — diz Zambra numa troca de e-mails com o GLOBO. — Queria tornar presente e visível uma paisagem e uma linguagem que sentia ausentes e distantes. Esse desejo me fez pressentir que seria um livro mais longo do que os outros. É também um romance sobre a acumulação, a duplicação e o desgaste cotidiano, sobre as repetições (em algum momento, pensei em no título “Dois repetentes”). E o narrador não escreve, ele fala.

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A paisagem que Zambra sentia ausente e distante é a Santiago do início dos anos 1990 até 2014. A linguagem é a orgulhosa poesia chilena, bicampeã do Nobel de Literatura com Gabriela Mistral e Pablo Neruda. E os “dois repetentes” são Gonzalo e seu enteado Vicente, ambos candidatos ao título de “poeta chileno”. O livro começa narrando as primeiras (e desastrosas) relações sexuais de Gonzalo, então um adolescente que arrisca uns poemas sofríveis, e Carla, sua namorada. Os dois se separaram e voltam se reencontrar quase uma década depois, quando Carla já é mãe de um menino de seis anos, Vicente. Gonzalo, que ainda escreve versos, reata com Carla e se torna, para Vicente, uma figura paterna mais sólida do que o próprio pai do menino, um advogado ambicioso e patético. Já crescido, Vicente sonha em ser poeta, como o padrasto.

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“Poeta chileno” não é o primeiro romance em que Zambra explora as relações entre padrastos e enteados. “A vida privada das árvores”, de 2007, Julián tenta fazer sua enteada, Daniela, pegar no sono com história sobre um álamo e um baobá que conversam quando ninguém está olhando. Já Gonzalo pesquisa os nomes das árvores porque tem vergonha dizer que a Vicente que não os conhece quando os dois passeiam no parque. Gonzalo se escandaliza com algumas das definições de padrasto encontradas no dicionário da Real Academia Espanhola: “pai ruim”, “obstáculo”, “pedaço pequeno de pele que se levanta da carne imediata às unhas das mãos e causa dor", "estorvo”.

— É um lugar tão difícil, tão esquisito, o do padrasto. Quem aceita ocupar o lugar de pai de um filho alheio aposta tudo o que tem. É muito mais valente do que o poeta solitário lutando contra a página em branco. Se fracassa, a vergonha é mil vezes pior do que se tivesse publicado um livrinho ruim por aí — diz Zambra, que é pai e padrasto. — Escrever sobre um padrasto e seu enteado também me pareceu uma entrada preciosa para abordar a relação complexa da minha geração com a ideia de pai-ditador. Nosso conflito eterno com a autoridade, inclusive com a própria autoridade.

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Zambra nasceu em 1975, dois anos após o golpe que instituiu a ditadura sanguinária de Augusto Pinochet. É da mesma geração de Gonzalo. Já Vicente é da geração dos jovens que saíram repetidas vezes às ruas, a partir de 2011, para pedir educação gratuita, reformas sociais e a derrubada da Constituição de Pinochet. Ele diz que só vai entrar na universidade quando esta for gratuita. Do México, onde vive há alguns anos, Zambra assistiu, com "muita esperança e alegria", aos protestos que resultaram na convocação de uma Constituinte que iniciou os trabalhos em julho.

— Primeiro, temos que jogar no lixo a Constituição de Pinochet. Depois, inventar uma nova letra a uma nova melodia, que sejam legítimas, coletivas e dançantes — diz o escritor.

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De letra, Zambra entende. Assim como Gonzalo e Vicente, ele também sonhava com o título de “poeta chileno”. Antes de lançar seus romances curtos, ele arriscou dois livros de poesia: “Bahía Inútil” e “Mudanza”, inéditos no Brasil. Zambra nunca deixou se escrever versos, apenas de publicá-los.

— Às vezes, “traduzo” meus poemas na linguagem da prosa, por assim dizer, e gosto mais da tradução do que do original — conta. — Em geral, quando publico algo, é porque sinto que já não me pertence. Por isso não publico meus poemas, porque sinto que são muito meus.

Capa de "Poeta chileno", novo romance do escritor Alejandro Zambra, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Poeta chileno", novo romance do escritor Alejandro Zambra, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Poeta chileno"

Autor: Alejandro Zambra. Tradução: Miguel Del Castillo. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 432. Preço: R$ 74,90.

"Ficção: 2006-2014"

Autor: Alejandro Zambra. Tradução: Miguel Del Castillo, Josely Vianna Baptista e José Geraldo Couto. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 560. Preço: R$ 79,90.