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‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carroll, completa 150 anos encantando leitores e artistas

Repleta de jogos de palavras , obra-prima foi lida sob diferentes pontos de vista, das teses psicanalíticas às viagens psicodélicas
Detalhe de ilustração de Rosângela Rennó para edição de "Alice no país das maravilhas" Foto: Divulgação/Editora Cosac Naify
Detalhe de ilustração de Rosângela Rennó para edição de "Alice no país das maravilhas" Foto: Divulgação/Editora Cosac Naify

LONDRES - Em 4 de julho de 1862, num singelo passeio de barco pelo rio Tâmisa, nos arredores da cidade inglesa de Oxford, nasciam histórias tão incríveis que viajariam o planeta e povoariam o imaginário coletivo de leitores de diversas idades mais de um século depois. A bordo da embarcação, as irmãs Alice, Lorina e Edith Liddell divertiam-se com o mundo maravilhoso inventado pelo reverendo Charles Lutwidge Dodgson, amigo da família, para entretê-las. A pequena Alice, então com dez anos, insistiu com o autor para que pusesse tudo no papel “para ela”. Mal sabia a menina que boa parte das aventuras embaladas por águas inglesas seria publicada pela primeira vez exatos três anos depois, em julho de 1865, como “Alice no País das Maravilhas”, e inscreveria o nome de Dodgson, ou melhor, de Lewis Carroll, pseudônimo com o qual ele se tornou conhecido, no panteão dos grandes da literatura universal.

O livro, bem como sua continuação, “Através do espelho e o que Alice encontrou por lá”, publicado dois anos depois, continuam a render milhares de reedições e traduções há 150 anos, e os personagens de Carroll ganharam múltiplas formas e interpretações ao longo das décadas. As histórias vividas pela pequena e curiosa Alice depois que cai na toca de um coelho passaram a ser coisa de gente grande. Percorreram palcos de teatro, balé, viraram desenho animado, filme, quadrinhos. Tornaram-se tema de numerosas teses acadêmicas, objeto de estudos psicanalíticos e foram homenageadas com exposições. No início do ano, uma das comemorações do Reino Unido em torno do livro foi o lançamento de selos comemorativos do Royal Mail para colecionadores e fãs. No Brasil, novas e caprichadas edições também estão chegando aos leitores (leia mais sobre os livros na página 5). Alice continua mais pop do que nunca.

Autor de “Alice’s Adventures: Lewis Carroll in Popular Culture” (Aventuras de Alice: Lewis Carroll na cultura popular, em tradução livre), o professor da Universidade de Kingston, Will Brooker, disse ao GLOBO que cada geração interpretou o texto do escritor inglês conforme a cultura do seu tempo. Carroll foi lido e relido sob muitos prismas diferentes. Na década de 1930, entrou em ação a psicanálise freudiana para interpretá-lo e tentar descobrir tudo o que podia estar por trás do texto. Na de 1960, o mundo das maravilhas foi encarado como uma grande viagem psicodélica observada num momento em que a sociedade se via diante do avanço do LSD.

Em 1990, foi a vez de especialistas cogitarem a possibilidade da pedofilia, de as fantasias de Carroll estarem ligadas a uma perigosa e excessiva proximidade com as crianças. O escritor, poeta e matemático também foi um exímio fotógrafo, e seus trabalhos mais conhecidos são as imagens de meninas, normalmente filhas de casais amigos (como as três Liddell), registradas em poses quase sensuais e com pouca ou às vezes nenhuma roupa. Nenhum estudo, porém, provou que Carroll, profundamente religioso, tenha avançado qualquer sinal, embora seu amor especial por Alice tenha ficado registrado em muitas cartas.

— Foi uma década que também refletiu o culto das celebridades. Carroll manteve uma certa distância social, era discreto. Mas a avaliação era de que, por isso mesmo, deveria estar escondendo algo. Ninguém poderia ser inocente — observa Brooker.

O fundamental, continua o especialista, é que se trata de um livro universal, contraditoriamente simples e complexo, por vezes mórbido ou otimista, violento, inocente e inteligente a um só tempo.

— É uma espécie de quebra-cabeça. Teve diferentes interpretações nos séculos XIX e XX. Surpreendentemente, apesar de toda a sua complexidade, com tantos jogos de palavras (em inglês) e referências específicas à cultura britânica e sua geografia, universalizou-se. Talvez pelo fato de tantos se enxergarem como crianças explorando o mundo, como Alice. Nós nos vemos no livro — afirma.


Alice Liddell fotografada por Lewis Carroll
Foto: Reprodução
Alice Liddell fotografada por Lewis Carroll Foto: Reprodução

Para o psicanalista Jurandir Freire Costa, “Alice no País das Maravilhas” permanece um livro atual por numerosas razões, entre elas justamente a de chamar atenção para as múltiplas visões do mundo.

— Lewis Carroll mostra que a realidade do mundo e do sujeito, além de paradoxal, é sempre relativa ao modo como a interpretamos. Sugere, por isso, que talvez fosse prudente renunciar ou versatilizar o narcisismo que fundamenta nossas crenças e julgamentos — diz Costa. — Se a verdade está comprometida com o poder e o desejo, tanto quanto com o saber, seria bom evitar que nossas convicções se tornassem rituais cegos de credulidade, sob pena de fazermos muito mal aos outros e a nós mesmos.

Os motivos são incontáveis para que as aventuras de Alice sejam ainda hoje tão inspiradoras. No imponente palco do Royal Opera House, em Londres, por exemplo, o Royal Ballet apresenta ao público uma adolescente apaixonada, puxada para a toca pelo coelho de colete e relógio que, instantes antes, era ninguém menos que o próprio Lewis Carroll. Essa interpretação do Royal Ballet, criada em 2011 e extremamente bem-sucedida, voltou ao cartaz no início do ano para homenagear o aniversário do livro. Misturando dança clássica e contemporânea, o balé lança mão de inúmeros efeitos cênicos que fazem a menina aumentar e encolher, e movimentam o irônico gato de Cheshire ou a Lagarta Azul com jogos de luz e articulação de bailarinos sincronizados.

— Não resta dúvida de que a história é universal, qualquer um pode gostar. O importante aqui é o balé. Se fosse uma criança nesse papel, ficaria muito difícil sustentar o interesse na coreografia. Ao usarmos uma jovem, em uma história de amor, podemos aproveitar muito mais a bailarina — conta o diretor do Royal Ballet, Kevin O’Hare.

A artista plástica Rosângela Rennó, que leu as duas histórias ainda adolescente, conta que ficou profundamente impactada pelo jogo duplo do espelho.

— Fiquei fascinada ao pensar nos espelhos como dispositivos através dos quais o direito se torna canhoto, o negativo vira positivo, o senso comum fica sem sentido, o absurdo, viável, e por aí vai… Acho que hoje muitos de nós desejaríamos ter um espelho que de fato invertesse alguns fatos — conta a artista plástica, que fez as ilustrações da caprichada edição de “Através do espelho” que a Cosac Naify acaba de lançar. — Do outro lado dele, no País do Espelho, corrupção é uma palavra que não existe, nem mesmo Humpty Dumpty ouviu falar nela..

Ainda no contexto das comemorações da obra, o emblemático manuscrito de 1865, escrito e ilustrado por Carroll — a primeira edição impressa já saiu com as ilustrações clássicas de John Tenniel —, um dos maiores tesouros da British Library, viaja pelos Estados Unidos (The Morgan Library & Museum, em Nova York, e The Rosenbach of the Free Library, na Filadélfia). A explicação para o manuscrito sair de casa em turnê justamente neste momento é simples: ele foi comprado por um colecionador americano em 1928, mas presenteado ao Reino Unido em 1948 em homenagem à participação do país na Segunda Guerra. Assim que voltar a Londres, ele será a estrela de uma exposição prevista para o final do ano na British Library, que vai explorar as várias adaptações e interpretações da história.


O coelho branco na versão do ilustrador Anthony Browne, reeditada agora na Inglaterra
Foto: Reprodução / Reprodução
O coelho branco na versão do ilustrador Anthony Browne, reeditada agora na Inglaterra Foto: Reprodução / Reprodução

A obra-prima de Carroll também será destaque na 17ª edição do Salão FNLIJ do Livro Infantil e Juvenil, que acontecerá entre os dias 10 e 21 de junho no Centro de Convenções Sul América, no Rio de Janeiro. Além de uma exposição com as principais edições brasileiras e algumas estrangeiras, o livro será tema de um seminário no evento, do qual participarão autores como Marina Colasanti. A escritora traduziu “A pequena Alice no País das Maravilhas” (Galerinha), versão para crianças bem menores escrita por Carroll cinco anos depois de sua “Alice” original, e que será lançada pela autora no Salão no dia 17.

Marina lembra que, hoje, a história de Alice é mais conhecida pelo cinema e pelas versões e adaptações, e que o livro original, com o texto integral, é pouco lido, principalmente no Brasil.

— A Alice completa não é lida pelas crianças e jovens, é mais para os adultos, assim como “Dom Quixote”. Aquele universo familiar que foi criado para divertir as meninas Liddell já está muito distante das crianças de hoje — diz a escritora. — Nesse sentido a versão completa ficou um pouco datada.

O que não significa, porém, que a obra tenha perdido seu encanto e interesse, completa Marina. Pelo contrário. Para ela, o mergulho de Alice num mundo aparentemente ilógico ainda “encosta nas teorias freudianas, na teoria do inconsciente e continua muito rico”.

— Sempre se repete que o livro de Carroll é extremamente absurdo, mas quando eu o li, já adulta, me pareceu muito mais consequente do que a gente pensa. Não era para ser incompreensível, pelo contrário. Era para as meninas Liddell se divertirem e todas as coisas escritas ali faziam sentido para elas — comenta Marina. — Ele estava fazendo uma grande brincadeira com as coisas engomadas do cotidiano delas. Ele estava desengomando tudo! Acho que ainda permanece uma obra universal exatamente pela pluralidade de leituras e de interpretações que possibilita.

Colaborou Mànya Millen