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Alvo de rumores de que seria Elena Ferrante, Domenico Starnone usa conflito familiar em livro

‘Dialeto é língua das emoções primárias, como ódio, amor, sexo e violência’, diz autor
Domenico Starnone Foto: MARCELLO MENCARINI / Divulgação
Domenico Starnone Foto: MARCELLO MENCARINI / Divulgação

RIO - Quando O GLOBO mencionou Elena Ferrante , o escritor italiano Domenico Starnone repetiu o que diz a todos os entrevistadores que perguntam se ele ou sua mulher, a tradutora Anita Raja, são a autora da “Tetralogia Napolitana” (série que começou com o fenômeno editorial “A amiga genial”):

— Não sou Elena Ferrante. Admiro muito seu trabalho, mas ele não influencia minha vida ou minha literatura — afirmou.

A pergunta não era essa. O GLOBO queria saber se Starnone notara alguma mudança na abordagem ou na interpretação de suas obras desde que começaram os rumores sobre sua ligação com Ferrante. A pergunta ficou sem resposta na troca de e-mails.

No entanto, “Assombrações”, romance de Starnone recém-publicado no Brasil, convida o leitor a pensar sobre os laços que unem as obras dos dois autores italianos. “Laços”, aliás, é o título de outro romance de Starnone, publicado por aqui no ano passado e, para muitos, uma resposta a “Dias de abandono” (Biblioteca Azul), de Ferrante.

“Assombrações” repete o cenário — Nápoles — e alguns temas da tetralogia: os conflitos do filho intelectual com a família proletária, a ascensão social sentida como traição das origens, o esforço para abandonar a vulgaridade furiosa do dialeto napolitano e aprender a escandir em bom italiano. Starnone adiciona outro ingrediente a essa receita italiana: fantasmas, as “assombrações” do título.

O romance é narrado por Daniele Mallarico, um celebrado ilustrador setentão que trocou Nápoles por Milão, mas volta à casa de sua infância por alguns dias. Em um novembro frio e chuvoso, ele vai cuidar do neto Mario, enquanto a filha e o genro viajam para participar de um congresso acadêmico — e tentar salvar o casamento. Mario, aos 4 anos, fala um italiano impecável, sem sombra dialetal, é controlador e sabe até acender o fogão.

Diante de um fantasma

O menino quer brincar o tempo todo, mas o avô precisa trabalhar nas ilustrações de uma nova edição do conto “The Jolly Corner”, do autor americano-britânico Henry James (1843-1916). O conto é a história de um sujeito que volta à sua antiga casa, em Nova York, e topa com um fantasma, ou melhor, com o que ele teria sido se tivesse se tornado um homem de negócios.

É mais ou menos o que acontece com Mallarico: ele recorda os parentes mortos — a mãe que temia o vazio, o pai operário que perdia todo o salário no jogo — e imagina quem teria se tornado se não tivesse abandonado Nápoles confiante em seu talento com os lápis e as tintas. “Assombrações”, aliás, contém um apêndice com ilustrações do italiano Dario Maglionico.

— Cada escolha é um corte, exclui algo de nós, deixa algo para trás. O que somos, ou pensamos ser, é resultado dos golpes de machado com que cortamos o que parecia perigoso ou inconsistente — defende Starnone. — O que cortamos não deixa de ser parte de nós, e às vezes volta, como em “Assombrações”, e nos faz sentir como é artificial e precária nossa identidade.

Mallarico percebe como é precária a sua identidade de artista famoso de Milão quando as ruas de Nápoles o recordam de sentimentos e palavras que não cabem no bom italiano, como a “raggia”, a raiva. Na escola, os professores ensinavam que só os cães eram acometidos pela “raggia”. Os italianos sentiam “ira”. Starnone vive em Roma, mas nasceu em Nápoles.

— O dialeto é a língua das emoções primárias: amor, ódio, sexo, violência — explica. — O italiano vem depois e, às vezes, se almejamos uma história honesta, é preciso recorrer ao dialeto para moldar o mundo que queremos contar.

Starnone ainda cita alguns autores que, diferentemente de Ferrante, influenciaram, sim, sua vida e sua literatura: Henry James, é claro, mas também Dante Alighieri, Matteo Maria Boiardo, Franz Kafka, Italo Calvino e “a incrível Clarice Lispector”.