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'Antifeminista', Lima Barreto condenou feminicídio na imprensa

Em crônicas, autor denunciou 'matadores de mulheres', mas promoveu polêmicas com feministas
Intervenção artística cultural em São José dos Campos em defesa dos direitos das mulheres; segundo OMS, taxa de feminicídios no Brasil é a quinta do mundo Foto: Lucas Lacaz Ruiz / Agência O GLOBO
Intervenção artística cultural em São José dos Campos em defesa dos direitos das mulheres; segundo OMS, taxa de feminicídios no Brasil é a quinta do mundo Foto: Lucas Lacaz Ruiz / Agência O GLOBO

RIO — “Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!” O apelo poderia estar nas páginas dos jornais de hoje, mas foi publicado numa crônica de Lima Barreto, em 1915. O escritor e articulista chamava a atenção para um fato tristemente corriqueiro no Brasil de outrora e no atual: os crimes passionais contra mulheres. Citando casos de “rapazes” que atentaram contra vida de ex-noivas que os rejeitaram, o autor lamentava a revivescência “de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher”.

“Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas”, escreveu. “Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.”

A defesa do direito das mulheres à escolha e a luta contra o feminicídio foram apenas duas das muitas campanhas abraçadas pelo autor na imprensa — atividade intensa que contribuiu para sua fama de polemista. Envolvendo-se com as principais questões do seu tempo, desde o racismo à preservação do patrimônio histórico, Lima apontou de forma pioneira — e, às vezes, solitária — problemas que nunca estiveram tão em evidência.

Os crimes contra mulheres, abordados pelo autor ao longo de cinco crônicas (“Não as matem”, “Lavar a honra, matando?”, “Os matadores de mulheres”, “Os uxoricidas e a sociedade brasileira” e “Mais uma vez”), é um exemplo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem a quinta maior taxa de feminícidios do mundo e os direitos femininos são cada vez mais discutidos na mídia, nas redes sociais e na própria Flip 2017 — a edição com maior presença feminina da história — onde o tema certamente aparecerá entre as discussões. Não por acaso, “Não as matem” é um dos textos selecionados pelo recém-lançado “Lima Barreto — Crônicas para jovens” (Global Editora), coletânea que busca aproximar o escritor do público mais jovem a partir de questões contemporâneas. A crônica, aliás, foi incluída numa seção intitulada “Protesto eterno”.

— Essa crônica em especial, “Não as mate”, impressiona por sua atualidade: poderia ter sido escrita por um articulista do nosso tempo — afirma o editor e historiador Gustavo Tuna, responsável pela organização do livro. — Geralmente, os textos de Lima para a imprensa ficam mais restritos ao público universitário, mas nós quisemos trazer esse conjunto para o jovem de 12-13 anos, que se identificará com questões como o racismo e a violência no futebol, ou o toma-lá-da-cá da política. A maneira como ele estava sempre pautando discussões, com suas reclamações literais, frontais, tem muito a ver com o que os jovens fazem hoje na internet.

MAIS FEMINISTAS QUE AS FEMINISTAS

De acordo com a historiadora Magali Engel, pesquisadora residente da Biblioteca Nacional e autora de artigos como “Relações de gêneros, violência e modernidade nas crônicas cariocas” e “Gênero e política em Lima Barreto”, o escritor carioca foi uma das primeiras vozes que se opuseram à absolvição ou à condenação branda dos “matadores de mulheres”, os “uxoricidas”, como eram conhecidos na época.

— Os costumes que conferiam ao homem o direito de matar a mulher adúltera eram descritos por ele como “selvagens” e “bárbaros” — diz ela.

Na época em que as crônicas foram publicadas, os chamados crimes passionais vinham ganhando repercussão na imprensa carioca, sobretudo a partir da década de 1910, explica Magali. Em uma pesquisa feita em jornais cariocas do período, a historiadora levantou 275 casos de crimes passionais entre 1901 e 1929. Os homens aparecem como a maioria absoluta dos agressores (89,09%) e as mulheres a maioria absoluta das vítimas (78,92%).

Além de mostrar o agudo sendo de observação do escritor para as mazelas da sociedade, as crônicas de Lima Barreto sobre o feminicídio também expõem as contradições de sua vida. Visto às vezes como misógino por críticos, ele nunca se casou e viveu distante das mulheres; até hoje, a representação pouca densa e um tanto monocromática de suas personagens femininas é considerada por muitos o seu ponto fraco como escritor (no entanto, segundo uma pesquisa do site “Hiperliteratura”, Lima mencionou 455 vezes a palavra “mulher” em todos os seus seis romances, um número considerável).

Acima de tudo, o escritor assumia uma posição agressiva contra o emergente movimento feminista da época, questionando suas reivindicações. Em crônicas como “Feminismo e o voto feminino” (1922), classificava as ligas como “seitas” e “igrejinhas”, e ironizava lideranças como Leolinda Daltro e Bertha Lutz. Mas, ao mesmo tempo que negava às mulheres o direito ao voto e a uma educação formal, defendia, paradoxalmente, o direito ao divórcio.

A princípio pode não fazer sentido, mas as duas coisas estavam ligadas, já que Lima acusava as feministas de não se preocuparem com o estado de submissão das mulheres aos homens (ordem que as rebaixava à “condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos”, conforme escreveu). Ao focar seus esforços no acesso aos empregos públicos e ao voto, o movimento se tornara, aos olhos do romancista, “um partido de cavação, como qualquer outro masculino”.

— No que se refere mais especificamente à situação das mulheres, as feministas compactuavam, segundo a visão do escritor, com os valores e práticas machistas que faziam das mulheres escravas na sociedade brasileira — observa Magali. — Ao invés de se baterem por causas que colocassem em xeque efetivamente a dominação masculina, assentada na própria maneira através da qual a sociedade encontrava-se estruturada, perdiam tempo com bandeiras conservadoras.

Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, a historiadora Eliane Vasconcelos defende a teoria de que Lima não era contra as mulheres e, sim, contra um feminismo que ele identificava como elitista e burocrático. Ao denunciar a parcialidade do movimento, ele estaria sendo, na verdade, mais feminista do que as próprias feministas.

— Lima estava muito à frente do seu tempo, mas é verdade que, às vezes, mostra uma posição dúbia: pede justiça para as mulheres mas também nega a elas alguns de seus direitos — observa Eliane, autora do livro “Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto”. — Ele achava que as feministas só queriam a emancipação das classes mais altas.