RIO — “Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!” O apelo poderia estar nas páginas dos jornais de hoje, mas foi publicado numa crônica de Lima Barreto, em 1915. O escritor e articulista chamava a atenção para um fato tristemente corriqueiro no Brasil de outrora e no atual: os crimes passionais contra mulheres. Citando casos de “rapazes” que atentaram contra vida de ex-noivas que os rejeitaram, o autor lamentava a revivescência “de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher”.
“Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas”, escreveu. “Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.”
A defesa do direito das mulheres à escolha e a luta contra o feminicídio foram apenas duas das muitas campanhas abraçadas pelo autor na imprensa — atividade intensa que contribuiu para sua fama de polemista. Envolvendo-se com as principais questões do seu tempo, desde o racismo à preservação do patrimônio histórico, Lima apontou de forma pioneira — e, às vezes, solitária — problemas que nunca estiveram tão em evidência.
Os crimes contra mulheres, abordados pelo autor ao longo de cinco crônicas (“Não as matem”, “Lavar a honra, matando?”, “Os matadores de mulheres”, “Os uxoricidas e a sociedade brasileira” e “Mais uma vez”), é um exemplo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem a quinta maior taxa de feminícidios do mundo e os direitos femininos são cada vez mais discutidos na mídia, nas redes sociais e na própria Flip 2017 — a edição com maior presença feminina da história — onde o tema certamente aparecerá entre as discussões. Não por acaso, “Não as matem” é um dos textos selecionados pelo recém-lançado “Lima Barreto — Crônicas para jovens” (Global Editora), coletânea que busca aproximar o escritor do público mais jovem a partir de questões contemporâneas. A crônica, aliás, foi incluída numa seção intitulada “Protesto eterno”.
— Essa crônica em especial, “Não as mate”, impressiona por sua atualidade: poderia ter sido escrita por um articulista do nosso tempo — afirma o editor e historiador Gustavo Tuna, responsável pela organização do livro. — Geralmente, os textos de Lima para a imprensa ficam mais restritos ao público universitário, mas nós quisemos trazer esse conjunto para o jovem de 12-13 anos, que se identificará com questões como o racismo e a violência no futebol, ou o toma-lá-da-cá da política. A maneira como ele estava sempre pautando discussões, com suas reclamações literais, frontais, tem muito a ver com o que os jovens fazem hoje na internet.
MAIS FEMINISTAS QUE AS FEMINISTAS
De acordo com a historiadora Magali Engel, pesquisadora residente da Biblioteca Nacional e autora de artigos como “Relações de gêneros, violência e modernidade nas crônicas cariocas” e “Gênero e política em Lima Barreto”, o escritor carioca foi uma das primeiras vozes que se opuseram à absolvição ou à condenação branda dos “matadores de mulheres”, os “uxoricidas”, como eram conhecidos na época.
— Os costumes que conferiam ao homem o direito de matar a mulher adúltera eram descritos por ele como “selvagens” e “bárbaros” — diz ela.
Na época em que as crônicas foram publicadas, os chamados crimes passionais vinham ganhando repercussão na imprensa carioca, sobretudo a partir da década de 1910, explica Magali. Em uma pesquisa feita em jornais cariocas do período, a historiadora levantou 275 casos de crimes passionais entre 1901 e 1929. Os homens aparecem como a maioria absoluta dos agressores (89,09%) e as mulheres a maioria absoluta das vítimas (78,92%).
Além de mostrar o agudo sendo de observação do escritor para as mazelas da sociedade, as crônicas de Lima Barreto sobre o feminicídio também expõem as contradições de sua vida. Visto às vezes como misógino por críticos, ele nunca se casou e viveu distante das mulheres; até hoje, a representação pouca densa e um tanto monocromática de suas personagens femininas é considerada por muitos o seu ponto fraco como escritor (no entanto, segundo uma pesquisa do site “Hiperliteratura”, Lima mencionou 455 vezes a palavra “mulher” em todos os seus seis romances, um número considerável).
Acima de tudo, o escritor assumia uma posição agressiva contra o emergente movimento feminista da época, questionando suas reivindicações. Em crônicas como “Feminismo e o voto feminino” (1922), classificava as ligas como “seitas” e “igrejinhas”, e ironizava lideranças como Leolinda Daltro e Bertha Lutz. Mas, ao mesmo tempo que negava às mulheres o direito ao voto e a uma educação formal, defendia, paradoxalmente, o direito ao divórcio.
A princípio pode não fazer sentido, mas as duas coisas estavam ligadas, já que Lima acusava as feministas de não se preocuparem com o estado de submissão das mulheres aos homens (ordem que as rebaixava à “condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos”, conforme escreveu). Ao focar seus esforços no acesso aos empregos públicos e ao voto, o movimento se tornara, aos olhos do romancista, “um partido de cavação, como qualquer outro masculino”.
— No que se refere mais especificamente à situação das mulheres, as feministas compactuavam, segundo a visão do escritor, com os valores e práticas machistas que faziam das mulheres escravas na sociedade brasileira — observa Magali. — Ao invés de se baterem por causas que colocassem em xeque efetivamente a dominação masculina, assentada na própria maneira através da qual a sociedade encontrava-se estruturada, perdiam tempo com bandeiras conservadoras.
Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, a historiadora Eliane Vasconcelos defende a teoria de que Lima não era contra as mulheres e, sim, contra um feminismo que ele identificava como elitista e burocrático. Ao denunciar a parcialidade do movimento, ele estaria sendo, na verdade, mais feminista do que as próprias feministas.
— Lima estava muito à frente do seu tempo, mas é verdade que, às vezes, mostra uma posição dúbia: pede justiça para as mulheres mas também nega a elas alguns de seus direitos — observa Eliane, autora do livro “Entre a agulha e a caneta: a mulher na obra de Lima Barreto”. — Ele achava que as feministas só queriam a emancipação das classes mais altas.