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Antônio Xerxenesky: 'As causas da depressão vão além da química cerebral. No Brasil, uma delas é a política'

Em 'Uma tristeza infinita', seu quarto romance, autor reflete sobre saúde mental e religião e diz que 'o que se opõe à ciência não é a fé, mas o fundamentalismo'
O escritor Antônio Xerxenesky: "Em qualquer roda de amigos, o assunto logo vira o antidepressivo que cada um está tomando" Foto: Renato Parada / Divulgação
O escritor Antônio Xerxenesky: "Em qualquer roda de amigos, o assunto logo vira o antidepressivo que cada um está tomando" Foto: Renato Parada / Divulgação

Em 2014, quando lançava “F”, seu segundo romance, Antônio Xerxenesky disse ao GLOBO que gostava de pensar que escrevia “livros divertidos, com zumbis e assassinas de aluguel” . À época, o gaúcho radicado em São Paulo tinha 30 anos e chamava atenção com seus livros cheios de referências pop (do cinema à literatura e à música), que buscavam reinventar gêneros como o western, o fantástico e o thriller. Em 2012, ele aparecera na lista dos 20 “melhores jovens escritores brasileiros” feita pela revista Granta. O tempo passou e, agora, aos 37 anos, Xerxenesky lança seu quarto romance, “Uma tristeza infinita”, e uma nova edição de “F” (ambos pela Companhia das Letras). E afirma estar “de saco cheio da cultura pop ”.

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— Eu era o tipo de pessoa que ficava três horas na fila para a estreia de “O senhor dos anéis” e hoje sou alérgico a filme de super-herói. Estou perto dos 40 anos e tive um filho. Me recuso a falar em maturidade. Estou ficando velho mesmo, meus interesses são outros — diz Xerxenesky, que também observa uma mudança em suas influências literárias. — Minha primeira paixão foi Thomas Pynchon, que se reinventa a cada livro reescrevendo gêneros literários. Continuo gostando dele, mas estou mais interessado em autores que mesclam ensaio e ficção, como Hermann Broch e Robert Musil, essa turma modernista de língua alemã barra pesada. “Uma tristeza infinita” é um livro de transição. Para o quê, eu ainda não sei.

A sinopse e, em especial, os cenários de “Uma tristeza infinita” lembram um pouco “A montanha mágica”, catatau de Thomas Mann, outro modernista alemão, que tanto Nicolas, protagonista do romance, quanto o próprio Xerxenesky acharam “chatíssimo”. Nicolas é um psiquiatra hipocondríaco que passou a Segunda Guerra Mundial em Vichy, capital da França colaboracionista. Após a derrota do nazismo, acompanhado da mulher, Anna, ele segue para um sanatório suíço e se esforça para curar esquizofrênicos, neuróticos e melancólicos usando o método psicanalítico .

“"Eu ficava três horas na fila para a estreia de 'O senhor dos anéis' e hoje sou alérgico a filme de super-herói. Me recuso em falar em 'maturidade'. Estou ficando velho, são outros interesses" ”

Antõnio Xerxenesky
sobre deixar as referências pop de seus primeiros livros

Quase todos os pacientes são traumatizados de guerra: uma ex-secretária dos cientistas que desenvolveram a bomba atômica, um soldado, o funcionário de uma seguradora que apoiou o Terceiro Reich . Da interação de Nicolas com seus pacientes partem as principais linhas de força: a psicanálise versus os antidepressivos , a culpa dos que se silenciaram diante do fascismo , os limites da ciência, a luta entre fé e razão.

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Xerxenesky começou a esboçar “Uma tristeza infinita” em 2017, ao participar de uma residência literária em Montricher, povoado suíço com menos de mil habitantes. Ele planejava escrever um romance sobre vampiros, mas mudou de ideia caminhando pelos bosques da região. Aposentou as criaturas fantásticas e se voltou para temas que lhe interessavam há tempos, como um inacreditável triunfo da barbárie sobre a razão iluminista , a difícil relação com o sagrado e a epidemia de depressão. “Uma tristeza infinita” se passa em 1953, ano que a clorpromazina, pioneiro dos antipsicóticos, chegou às farmácias. O romance é “secretamente dedicado a todos os psiquiatras e psicanalistas” que atenderam o autor na última década.

— Saúde mental sempre me interessou. Não é aceitável que a depressão seja a marca de toda a classe média paulistana. Em qualquer roda de amigos, o assunto logo vira o antidepressivo que cada um está tomando. Todos têm uma figurinha engraçada de Rivotril no WhatsApp. Será que é normal todos saberem o nome de um medicamento tarja preta viciante? — diz. — A depressão tem causas que vão além do balanço químico no cérebro. No Brasil, uma delas é a política.

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O país é mencionado uma única vez em “Uma tristeza infinita” — um psiquiatra especula sobre a influência da cultura de “um país quente e festivo” na saúde mental de seus habitantes —, mas as descrições de uma Europa que tenta se reerguer dos escombros da guerra podem remeter a dilemas nacionais contemporâneos. Dois leitores enviaram para Xerxenesky um trecho do romance sobre a difícil convivência “com pessoas que apoiavam” um regime responsável pela morte de seus cidadãos e apontaram semelhanças com o Brasil atual.

“"Em qualquer roda de amigos, o assunto vira o antidepressivo de cada um. Todos têm uma figurinha engraçada de Rivotril no WhatsApp. Será normal todos saberem o nome de um tarja preta viciante?"”

Antônio Xerxenesky
sobre a prevalência de antidepressivos entre a classe média

Curiosidade pelo sagrado

Outro assunto que está na ordem do dia tratado em “Uma tristeza infinita” é a conflituosa relação entre ciência e religião, que aparecera no romance anterior de Xerxenesky, “As perguntas” , de 2017. Crentes na ciência, Nicolas e Anna têm curiosidade pelo sagrado. Convertido recentemente ao judaísmo, o escritor estranha que a religião seja um tema praticamente ausente da literatura brasileira atual.

— Devo fazer parte do 1% dos escritores brasileiros que não são ateus. É estranho que num país majoritariamente religioso essa experiência seja ignorada pela literatura. Parece até que o ateísmo é a norma — afirma. — O que se opõe à ciência não é a fé, mas o fundamentalismo. Jonathan Sacks (rabino britânico) , sobrinho de Oliver Sacks (neurologista e escritor), diz que a melhor resposta à má religião é pensar formas saudáveis de se relacionar com o sagrado.

“"Devo fazer parte do 1% dos escritores brasileiros que não são ateus. É estranho que num país majoritariamente religioso essa experiência seja ignorada pela literatura."”

Antônio Xerxenesky
que se converteu recentemente ao judaísmo

Xerxenesky sublinha que apenas as más religiões oferecem respostas prontas e que, diferentemente da farmacologia, a boa teologia (e a boa política) é capaz de nos ajudar a imaginar um futuro além da tristeza aparentemente infinita do presente.

— Numa crise severa de depressão, imaginamos que nunca seremos felizes de novo, o que é perigoso. É difícil preencher esse vazio de sentido. Uma saída interessante é o ativismo político. Também gosto do messianismo de Walter Benjamin (filósofo judeu alemão) , que sonha que um mundo melhor é possível — explica. — Se acharmos que a tristeza ou o bolsonarismo são infinitos, estamos lascados! Temos que pensar em saídas, lembrando que nem tudo é perdoável, mas que as pessoas mudam.

Capa de "Uma tristeza infinita", romance de Antônio Xerxenesky, recém-lançado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Uma tristeza infinita", romance de Antônio Xerxenesky, recém-lançado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Uma tristeza infinita"

Autor: Antônio Xerxenesky. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 256. Preço: R$ 64,90.