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Roberto de Regina, de 94 anos, é a memória viva do cravo no país

Destaque de livro dedicado ao instrumento, músico e luthier mantém espaço para recitais em Pedra de Guaratiba
Aos 94 anos, o músico se dedica a afinar e fazer a manutenção de seu cravo, um dos mais de cem que já construiu Foto: Divulgação/Malu Ravagnani
Aos 94 anos, o músico se dedica a afinar e fazer a manutenção de seu cravo, um dos mais de cem que já construiu Foto: Divulgação/Malu Ravagnani

Não fossem os números trágicos de vítimas noticiados todos os dias e a ausência de visitantes na Capela Magdalena, sítio em Pedra de Guaratiba onde vive desde os anos 1970, Roberto de Regina talvez não pudesse dizer que existe uma pandemia no mundo. Sem sair de casa, o músico de 94 anos passa os dias cuidando das mais de 500 réplicas de meios de transporte e maquetes de castelos e catedrais, expostas no museu criado por ele na propriedade. E, claro, afina e toca seu cravo, um dos mais de cem já construídos por ele, e com o qual se apresentava para os visitantes antes da pandemia.

A precisão com que constrói as réplicas e seus cravos é a mesma com que executa obras de Bach, Couperin e Scarlatti ao teclado, responsável por fazer do músico e luthier um capítulo à parte da história do instrumento no Brasil. Das 384 páginas de “O cravo no Rio de Janeiro do século XX” (Rio Books) , recém-lançado pelos cravistas e professores Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira e Maria Aida Barroso, Roberto é citado ou é o tema central em mais de 50 delas.

— Minha rotina continua a mesma, já não tinha nenhuma vontade de sair do sítio, muito menos agora. Eu e este cravo já viajamos muito, é hora de ficar em casa — diz Roberto, que acaba de montar a réplica de um barco do século XVII. — Era a Nau Capitânia de Luis XIV, numa escala perfeita. Por isso, chamo de réplica e não de miniatura, até porque tenho peças que chegam a dois metros e meio.

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A partir dos anos 1960, Roberto foi um dos maiores responsáveis pela disseminação do instrumento no Brasil, como regente ou solista. Além de influenciar musicalmente as gerações seguintes, sua atuação como luthier ampliou as possibilidades de acesso para os futuros instrumentistas — o cravo da casa de Fagerlande, no qual ele começou a tocar, aos 12 anos, foi construído por Roberto.

— Comecei a gostar de cravo quando ainda usava calças curtas. Eu era apaixonado pela música de Bach e Vivaldi, eles nasceram para trazer alegria ao mundo. Quando vi que não conseguiria dar conta deles no piano, meti na cabeça que queria um cravo — recorda Roberto. — A importação era proibitiva na época, mas consegui as peças para montar um aqui. Aí passei a construir também, fazia um consórcio de pessoas interessadas que me pagavam por mês e ia entregando aos poucos.

Roberto de Regina com espineta em 1972 Foto: Divulgação
Roberto de Regina com espineta em 1972 Foto: Divulgação

Nos cerca de 30 anos em que deu expediente como médico anestesista do Hospital Federal de Bonsucesso, a música ocupava as horas vagas (“Até o dia em que me aposentei e nunca mais tive uma hora vaga na vida”, brinca). Entre as décadas de 1960 e 1980, seus concertos e recitais tinham público cativo, atraindo muitos jovens que, mais tarde, também adotaram o instrumento.

— A música antiga, apesar do nome, se conecta muito com os jovens. Ela não exige o nível de conhecimento do clássico, é mais acessível — destaca o músico, que navega pelo YouTube assistindo a novos talentos do instrumento. — Eu não sei postar nada, tudo meu que está no YouTube foram outros que subiram. Mas adoro assistir, você se impressiona com a qualidade dos cravistas. Principalmente os da China e do Japão.

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Após tomar a primeira dose da vacina contra Covid-19, Roberto espera estar completamente imunizado em abril para reabrir a Capela Magdalena aos visitantes, observando as regras sanitárias. Outro plano é mais de longo prazo: o cravista começa a preparar o repertório do concerto de seu centenário:

— Já pensei em algumas obras, mas vai ser surpresa.