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Às vésperas do centenário, chileno Nicanor Parra fala sobre a ‘antipoesia’

Aos 99 anos, escritor recebeu O GLOBO em sua casa, no litoral do Chile

O poeta chileno Nicanor Parra, que completa 100 anos em setembro
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El Mercurio
O poeta chileno Nicanor Parra, que completa 100 anos em setembro Foto: / El Mercurio

LAS CRUCES (CHILE) - Numa rua de terra em Las Cruces, povoado de 2 mil habitantes no litoral chileno, há uma casa que se distingue das outras por uma palavra pichada na porta: “antipoesia”. Nela vive o homem que criou esse termo, e com ele revolucionou a literatura do século XX: Nicanor Parra, o antipoeta. O que é antipoesia? “Um tapa na cara do presidente da Sociedade de Escritores”, ele disse há muito tempo. O que é um antipoeta? “Um sacerdote que não crê em nada”, “um bailarino à beira do abismo”, “um vagabundo que ri de tudo, até da velhice e da morte”.

No Chile já se preparam as homenagens pelo centenário de Parra, em setembro, com direito a uma exposição em Santiago, uma fotobiografia e uma obra inédita dos anos 1980, recém-anunciada. Ele prefere ficar em Las Cruces, a 100 km da capital, em sua casa com vista para o Oceano Pacífico. Não participa de eventos, não gosta de entrevistas, nem de ser fotografado. Em alguns dias, não recebe ninguém. Em outros, oferece às visitas amostras generosas de sua memória e senso de humor afiados. Aos 99 anos, mantém o gosto por conversar, ler e preencher seus caderninhos (diz-se que guarda mais de 300).

Numa tarde de maio, Parra recebeu um visitante brasileiro com uma surpresa: antes mesmo dos cumprimentos de praxe, recitou de cor e em bom português versos de Fernando Pessoa (“Todas as cartas de amor são ridículas/ não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”) e Carlos Drummond de Andrade (“No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho”). Sempre cotado para o Nobel, ganhador do Prêmio Cervantes e um dos autores mais celebrados da língua espanhola, mas sem livros publicados no Brasil, teria Parra um interesse especial pela poesia de língua portuguesa?

— Não dou entrevistas! Eu só queria dizer esses poemas a meus amigos brasileiros, e você já vem com perguntas... — diz ao repórter do GLOBO o antipoeta, que ameaça encerrar o encontro, mas logo muda de ideia, sela a paz oferecendo biscoitos, e põe-se a falar.

Sentado no sofá da sala, em frente à janela com vista para o mar enevoado, Parra salta de um assunto a outro com sua voz aguda e irônica. Encara o interlocutor com olhar firme, emoldurado pelos cabelos brancos revoltos. Por uma hora, fala sobre matemática, que estudou e ensinou por décadas, e música popular chilena, paixão compartilhada com a irmã, a cantora e compositora Violeta Parra. Recita e comenta passagens de Shakespeare, de quem já traduziu “Rei Lear” e prepara há anos uma versão de “Hamlet”. E dá pistas sobre o estado atual da antipoesia.

— A grande questão da literatura é: como fazer uma frase? Parei de escrever quando percebi que nenhum poema se compara às frases de uma criança. Agora o que faço é anotar o que elas dizem — conta Parra, citando um de seus netos: “Por que miar? Se eu fosse um gato, faria AU”. — Nenhum poeta, professor, crítico ou Nobel faz melhor que isso.


O poeta Nicanor Parra com sua irmã, Violeta Parra
Foto: Divulgação/Arquivo Nicanor Parra
O poeta Nicanor Parra com sua irmã, Violeta Parra Foto: Divulgação/Arquivo Nicanor Parra

Nicanor Segundo Parra Sandoval nasceu em 5 de setembro de 1914, no povoado chileno de San Fabián de Alico, filho de um professor primário e uma costureira. É o mais velho dos nove irmãos de uma família que se tornou uma dinastia da cultura chilena, presente na literatura, na música, nas artes plásticas, na dança e no circo.

Com Violeta, investigou a música folclórica, sobretudo a cueca , gênero dos rincões mais pobres do país. Foi o grande incentivador da irmã mais nova, que nos anos 1950 e 60 exaltou as culturas tradicionais da América Latina e compôs canções celebradas em todo o continente, como “Gracias a la vida” e “Volver a los 17”. Depois do suicídio dela, em 1967, o irmão escreveu um de seus poemas mais longos e pungentes, “Defesa de Violeta Parra” (“Porque tu não te vestes de palhaço/ Porque não te compras nem te vendes/ Porque falas a língua da terra/ (...) És um manancial inesgotável/ De vida humana”).

UM POETA FORMADO EM MATEMÁTICA

Nicanor foi o primeiro dos Parra a chegar à faculdade. Estudou Matemática e Física na Universidade do Chile, em Santiago, enquanto colaborava com revistas literárias da capital. Em 1937, dois anos depois de Pablo Neruda se consagrar com “Residência na Terra” e quatro antes de Gabriela Mistral se tornar a primeira chilena a ganhar o Nobel, publicou o livro de estreia, “Cancioneiro sem nome”, mais tarde renegado. A poesia de Parra começou a se transformar no período em que viveu na Inglaterra, onde desembarcou em 1949 para se especializar em Cosmologia.

Na viagem de navio a Oxford, Parra fez sua única visita ao Brasil, uma escala no porto de Santos. Conhecido pela memória prodigiosa, narra em detalhes uma cena ocorrida há 65 anos, que parece saída de um de seus poemas cômicos: a briga entre um grupo de marinheiros americanos bêbados e dois brasileiros de feições indígenas, muito mais baixos que os adversários (“e os índios ganharam!”, diverte-se).

Em Oxford, aprofundou-se no modernismo e no surrealismo, mas também na poesia medieval declamada em praça pública, e chegou à intuição essencial da antipoesia. Contra o que chama de “poesia de terno e gravata”, criou uma obra ancorada na fala popular, no humor e na recusa de temas clássicos e da pompa literária. Em “Advertência ao leitor”, escrito nessa época, lê-se: “Segundo os doutores da lei este livro não deveria ser publicado:/ a palavra arco-íris não aparece nele em parte alguma,/ menos ainda a palavra dor (...)/ Cadeiras e mesas sim aparecem a granel,/ Caixões! Utensílios de escritório!/ O que me enche de orgulho/ Pois a meu ver o céu está caindo aos pedaços”.


Nicanoa Parra em Oxford, onde estudou no fim dos anos 1940
Foto: Divulgação/Arquivo Nicanor Parra
Nicanoa Parra em Oxford, onde estudou no fim dos anos 1940 Foto: Divulgação/Arquivo Nicanor Parra

Em 1954, de volta ao Chile, lançou “Poemas e antipoemas”, que apresentou a expressão definidora de sua obra e alguns de seus versos mais conhecidos até hoje. Em “Autorretrato”, descreve-se como um professor medonho e esgotado pelo excesso de trabalho. “Solilóquio do Indivíduo”, na forma de um longo monólogo, acompanha a evolução humana da pré-história ao presente, concluindo com um verso seco: “Mas não: a vida não tem sentido”.

A contradição aparente de uma poesia que “nega” a poesia, longe de ser incoerente, é a base do trabalho de Parra. A certa altura da conversa, pede que tragam de sua biblioteca um exemplar de “Fundamentos da física”, dos americanos Robert Bruce Lindsay e Henry Margenau, publicado no Chile em 1969. Abre na folha de rosto e mostra com orgulho o crédito: “tradução de Nicanor Parra”. Depois comenta um trecho sobre “o princípio da indecisão”. Empolgado, manda vir um livro do matemático austríaco Kurt Gödel, “Sobre proposições formalmente indecidíveis”.

— Isso é coisa avançada — brinca Parra, mostrando páginas de gráficos e equações. — O importante é que este senhor provou que alguns enunciados podem ser verdadeiros e falsos ao mesmo tempo.

Quando lhe sugerem que a antipoesia é uma espécie de filosofia, Parra corrige:

— Antifilosofia.

O apreço de Parra pela contradição era um corpo estranho nos polarizados anos 1960 e 70. Enquanto Neruda, ganhador do Nobel e filiado ao Partido Comunista, era a estrela da intelligentsia chilena, o antipoeta era visto com desconfiança por sua recusa a se alinhar a partidos, embora sempre tenha se dito de esquerda. Ainda assim, à consagração de “Poemas e antipoemas” seguiu-se o sucesso de livros como “Versos de salão” (1962) e “Canções russas” (1967) e o Prêmio Nacional de Literatura, em 1969. Parra viajou o mundo, participando de eventos em Cuba, Rússia e EUA (recorda com alegria um café da manhã com Guimarães Rosa num congresso do PEN Clube em Nova York, em 1966). Caiu nas graças dos beatniks e teve poemas traduzidos por Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti e William Carlos Williams. Foi publicado em vários idiomas e passou a ser cotado para o Nobel.

Em 1970, um fato mudou para sempre sua relação com o meio intelectual chileno. No ano seguinte à eleição de Salvador Allende, a quem não apoiou abertamente, ele foi fotografado tomando chá com a mulher do então presidente americano Richard Nixon na Casa Branca. Parra estava nos EUA como jurado de um concurso literário, e a foto, armada por assessores do governo, foi feita durante uma recepção protocolar. Mas, em meio à Guerra do Vietnã e às ameaças americanas a Allende, fez-se um escândalo em seu país natal. Se antes Parra era chamado pelos conservadores de “idiota útil da esquerda”, passou a ser acusado pela esquerda de “palhaço da burguesia”. Pouco adiantou lembrar que também era jurado do prêmio Casa de Las Americas, do governo cubano — que o desconvidou quando soube da foto.

ECOLOGIA EM TEMPOS DE REPRESSÃO

No fogo cruzado da Guerra Fria, Parra viveu uma guinada criativa. Passou a compor obras com frases curtas e explosivas, acompanhadas por desenhos ou montagens fotográficas, que batizou de “artefatos”. A polarização política era um de seus alvos preferidos. Parodiou um slogan castrista no artefato “Cuba sim, yankees também”. Ridicularizou o sonho americano com os versos “USA/ onde a liberdade/ é uma estátua”. Desenhou uma multidão carregando a faixa “Esquerda e direita unidas jamais serão vencidas”.


Artefato de Nicanor Parra
Foto: Reprodução
Artefato de Nicanor Parra Foto: Reprodução

A sala da casa de Las Cruces está repleta de artefatos, como se Parra vivesse hoje instalado em sua obra. Uma foto com os colegas de escola em Santiago ganhou a legenda “Todas íamos ser rainhas”, título de um poema de Gabriela Mistral. Encostada num canto, quase encoberta por uma pilha de livros e revistas, há uma espécie de placa de trânsito com três grandes setas — Passado, Presente e Futuro — apontando em direções diferentes. Perto dela está uma foto de Parra dando aulas na Universidade do Chile, onde trabalhou por 50 anos: ele aparece de frente para um quadro-negro que, repleto de inscrições e desenhos, lembra um artefato em progresso.

— Para mim, o quadro-negro era como um poema — comenta sobre a foto.

Depois do golpe militar liderado por Pinochet e do suicídio de Allende, em 1973, Parra, ao contrário de muitos artistas e intelectuais chilenos, não se exilou. Continuou a dar aulas na Universidade do Chile, no Departamento de Estudos Humanísticos da Faculdade de Ciências e Matemática, que se tornou uma ilha de livre pensamento durante a ditadura, atraindo dissidentes de vários matizes ideológicos. Em 1977, criou o personagem Cristo de Elqui, inspirado no caso real de um profeta barbudo e histriônico que vagava pelo Chile. Numa série de poemas protagonizados por ele, fazia diatribes contra o regime: “Aqui não se respeita nem a lei da selva!”, lê-se num deles.

Os alunos foram testemunhas de mais uma guinada na obra de Parra. Nos anos 1970, encontrou na ecologia e nos direitos humanos a plataforma da qual podia disparar contra os dois lados da Guerra Fria. “Nem capitalista/ nem socialista/ e sim o exato oposto:/ ecologista”, resumiu. Nas aulas, passou a falar em “literatura ecológica”. Às vésperas da visita de João Paulo II ao Chile, em 1987, definiu como objetivos do curso: “1) Averiguar se é lícito esperar que o Papa sirva de mediador entre Capitalismo e Socialismo Real com vistas à recuperação do planeta. 2) Colapso e Holocausto: são evitáveis? como sobreviver?”. Depois de ver o pontífice acenando para a multidão ao lado de Pinochet, escreveu o poema “O sorriso do Papa nos preocupa”.


Nicanor Parra dando aulas na Universidade do Chile
Foto: Divulgação/Marcelo Porta
Nicanor Parra dando aulas na Universidade do Chile Foto: Divulgação/Marcelo Porta

Em 1994, Parra deixou a universidade e se instalou em Las Cruces, onde se dedicou a um projeto antigo: traduzir Shakespeare. Em 2004, publicou sua versão de “Rei Lear”, intitulada “Lear, Rei e Mendigo”.

— Autor: Nicanor Parra — provoca, depois de recitar de memória as estrofes de abertura e encerramento da tragédia.

Parra já disse ter encontrado em “Rei Lear” uma oposição entre “a linguagem popular do bufão” e “a arte de bem dizer do rei”, por isso defende que “o método de Shakespeare é a antipoesia”. Sua versão foi elogiada por transpor o tom coloquial do autor inglês para o espanhol. Ele trabalha há décadas numa aguardada tradução de “Hamlet”. Perguntado sobre ela, limita-se a declamar sua passagem favorita, um diálogo em que o protagonista surpreende Ofélia pedindo para se deitar em seu colo:

— “Que pode fazer um homem senão ficar alegre?” — recita, repetindo a pergunta de Hamlet. — Essa é a chave!

PAIXÃO PELA MÚSICA DO SUBMUNDO

No retiro em Las Cruces, uma das alegrias de Parra são os netos e as crianças da vizinhança, que alimentam sua coleção de frases. Além da tirada do neto sobre o latido dos gatos, enumera outras que bem poderiam estar em seus artefatos, como a ocasião em que uma de suas netas interrompeu uma festa de família com a ordem: “Eu canto! Vocês aplaudem”.

— Eu me aproprio de tudo, de Shakespeare a Homero. Mas com as frases das pessoas, não. Sempre dou crédito — diz Parra, mostrando um poema recente, publicado numa revista chilena, composto a partir de uma conversa com sua faxineira, Rosita, sobre as razões que a levaram a abandonar a escola. — Hoje só me interesso pelo discurso infantil e pelo discurso limítrofe: o dos bêbados, loucos e lúmpens.

Parra pede que lhe tragam um disco de cueca . A música que sai da vitrola é acelerada, com violões e percussão marcando o ritmo urgente, homens e mulheres se alternando nos vocais. Ele escuta em silêncio por vários minutos, até que diz, em tom zombeteiro:

— Não são artistas cantando. É a música do submundo de Valparaíso. Prostitutas e ladrões! Se você for desacompanhado, não sai de lá inteiro. Escuta como eles falam. Isso é o que há de melhor!

Começa a batucar na mesa de madeira, seguindo com precisão o ritmo da cueca . Convida o repórter a batucar também e, quando se dá por satisfeito com o acompanhamento, passa a tilintar a colherzinha de metal na xícara de chá.

— Isso é o mais difícil, usar as coisas como instrumento — diz, subindo a voz para fazer-se ouvir em meio à música. — Temos que transformar tudo em instrumento musical!

Mais tarde, já de saída, o repórter pergunta sobre um cartaz pendurado na parede, ao lado da janela que dá para o Pacífico. É o anúncio da edição deste ano da feira literária de Las Cruces, em homenagem ao centenário de “nosso vizinho Nicanor Parra”. Ele faz um gesto desaforado e dá uma piscadela cúmplice.

— Eu não vou a nada disso! — diz, e se despede com um abraço.

Mesmo afastado da vida literária, o antipoeta é cada vez mais festejado. Em 2006, o Palácio La Moneda, sede do governo chileno, recebeu uma exposição com seus artefatos. Sinal dos tempos: um leitor fez questão de registrar em carta ao jornal “El Mercurio” que achou tudo aquilo “uma grande falta de respeito que faz muito bem à nossa democracia”. Em 2011, saiu na Espanha o segundo volume de suas “Obras completas e algo mais”, com recepção consagradora (no prefácio, o crítico Harold Bloom o chama de “poeta essencial”). No mesmo ano, ganhou o Prêmio Cervantes, láurea máxima da língua espanhola.

Para representá-lo na cerimônia, em Madri, mandou o neto, Cristóbal, e a velha máquina de escrever que usou para compor os primeiros antipoemas. Num deles, há mais de 50 anos, disse: “assim passa a glória do mundo/ sem pena/ sem glória/ sem mundo/ sem um miserável sanduíche de mortadela”. No discurso, lido pelo neto, Parra concluiu com um diálogo imaginário: “O senhor se considera merecedor do Prêmio Cervantes? Sim. Por quê? Por um livro que estou por escrever”.