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Autor alemão usa diário para contar histórias loucas dos anos 1960

Em livro, Hans Magnus Enzensberger relembra desmaio de Neruda e deportação por causa de camembert de Fidel
O escritor alemão Hans Magnus Enzensberger em 1995 Foto: Sérgio Tomisaki / Agência O Globo
O escritor alemão Hans Magnus Enzensberger em 1995 Foto: Sérgio Tomisaki / Agência O Globo

RIO - Num encontro com escritores em sua casa de praia, o líder soviético Nikita Kruschov convida as visitas para um mergulho, mas os calções de banho disponíveis ali são peças de tamanho único e tecido barato confeccionadas pela indústria da URSS. Os poucos autores que aceitam o convite descobrem que precisam segurar a sunga com as mãos para não acabarem pelados na frente de colegas ilustres como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Giuseppe Ungaretti.

Durante um coquetel numa balsa no Tâmisa, alguns presentes dão pelo sumiço da estrela da noite, o poeta chileno Pablo Neruda. Após algumas buscas, Neruda é finalmente encontrado encolhido num canto com um rádio portátil, à espera do anúncio do resultado do Prêmio Nobel de Literatura. A notícia chega minutos depois. Ao saber que não havia sido o escolhido, o poeta passa mal e desmaia.

Do outro lado do Atlântico, Fidel Castro faz um de seus longos discursos. Empenhado em superar os países capitalistas em tudo que puder, anuncia à população cubana sua intenção de produzir na ilha um queijo camembert de primeira. Alguns meses e milhões em investimentos depois, os primeiros camemberts cubanos estão prontos e Castro não tem dúvidas: são melhores do que os franceses. Contrariado, um de seus consultores europeus ousa discordar. É sumariamente expulso da ilha.

Com episódios desse naipe, reunidos de maneira tão caótica e desorientadora quanto a seu ver seria a própria História, o consagrado poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, 89 anos, constrói um panorama pessoal dos anos 1960 no recém-lançado “Tumulto”.

Escrito a partir de anotações da época que o escritor encontrou em velhos caixotes no sótão de sua casa, o livro narra viagens do autor pela União Soviética e um ano em que ele viveu em Cuba, entre 1968 e 1969, além de seu envolvimento com as revoltas estudantis e movimentos radicais de esquerda na Alemanha da segunda metade dos anos 1960.

Na época, Enzensberger chegou a anunciar que estava abandonando a literatura para dedicar-se à luta política. Plantou pés de café em Cuba, mas não demorou a perceber que naquela ilha tomada pelo culto a Fidel não estava a utopia que desejava.

O apego aos detalhes de “Tumulto” faz contraponto às esperanças grandiosas de então, calcadas em teorias amplas sobre o sentido da História. Para o Enzensberger de hoje, talvez faça mais sentido buscar a verdade histórica nesses fragmentos confusos do que em grandes sínteses: “sei que os historiadores se recusam a levar essas histórias suspeitas a sério. Isso é um erro! Elas costumam dizer mais do que qualquer teoria”, escreve.

Para comentar as incongruências do regime soviético, basta notar como era difícil encontrar absorventes íntimos no país: “a economia planejada parece não ter consciência de que vivem mulheres nesta terra.” Ou observar preços nas lojas: “Uma vez vi um microscópio que custava menos do que um par de pantufas.”

Dedicado “aos desaparecidos”, o livro pode ser lido como um inventário das ilusões perdidas da geração do autor, mas Enzensberger narra esperanças e decepções daquele período vertiginoso mais num tom de humor distanciado, irônico, do que de melancolia.

Saltando de um continente a outro, indo e voltando no tempo, o livro também se alterna entre memorialismo e o registro no presente, ao reproduzir entradas de diário. A opção pelo acúmulo de fragmentos resulta em pontos esgarçados demais – faz falta às vezes um fio condutor mais claro. Em geral, porém, Enzensberger se vale da ironia certeira que fez sua fama de poeta e ensaísta para compor uma montagem reveladora e irreverente do tumulto dos 1960.

* Miguel Conde é jornalista e doutor em Letras pela PUC-Rio

“Tumulto”. Autor: Hans Magnus Enzensberger. Editora: Todavia. Tradução: Sonali Bertuol. Páginas: 264. Preço: R$ 64,90. Cotação: Bom