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Autor angolano Ondjaki explora liberdade da língua ‘desportuguesa’

Em três livros inéditos e duas reedições, o angolano ondjaki amplia a possibilidade das palavras em narrativas líricas que vão dos versos aos contos
Ondjaki, escritor angolano Foto: Divulgação
Ondjaki, escritor angolano Foto: Divulgação

Em contraponto a tantas notícias sombrias mundo afora, o angolano Ondjaki volta às livrarias brasileiras com nada menos que cinco títulos. Três deles são novidades por aqui, além de duas reedições, variando entre prosa, poesia e infantil. Tem opções para todos os gostos, mas sempre com a qualidade que o fez ganhar prêmios importantes da língua portuguesa, como o Jabuti (2010) e o José Saramago (2013).

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Em se tratando de Ondjaki, falar em língua portuguesa talvez nem seja mais tão correto. Melhor pensar que a obra dele se concentra, cada vez mais, no que já se chamou de língua desportuguesa . Não que ele tente uma desconstrução do idioma e suas entranhas — o que, de resto, seria um exercício inócuo. Pelo contrário, o que Ondjaki faz é ampliar as possibilidades do português nosso de cada verso. Com seu trabalho delicado, ele agrega sabores diferentes, texturas e cheiros, sons e imagens, sempre com um pé na tradição e outro na evolução. O principal, com frequência, nem é tanto o “enredo”, mas sua liberdade criativa e uma sugestão: seja livre você também.

Veja-se, por exemplo, a prosa poética e os poemas curtos de “Materiais para confecção de um espanador de tristezas”. São pequenos momentos de experimentação e questionamentos, exigindo do leitor nova sintonia com velhas palavras, gradativamente levando-o a desligar-se do mundo. Essa “fuga para dentro”, cada vez mais necessária, é também um encontro com nomes que nos formaram a cultura e o imaginário. É impossível não capturar em suas páginas os flertes com os nossos Clarice Lispector, Adélia Prado ou Raduan Nassar, entre outros —além do namoro firme com Manoel de Barros. “Reaprendemos assim o lugar das nossas almas”, diz o poeta ao encruzilhar-se com uma lesma.

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Outra novidade da safra é “Verbetes para um dicionário afetivo”, parceria com a angolana Ana Paula Tavares, o português Manuel Jorge Marmelo e o brasileiro Paulinho Assunção. A partir de temas variados (como aparições, brinquedos, chuvas ou feitiços), cada um propõe verbetes que jogam com a memória, com o lirismo e, sobretudo, com a vida e suas possibilidades. O resultado ficou bonito, uma carinhosa conversa de compadres que celebra a amizade e, mais uma vez, o amor pela palavra. Entre versos e contos, salvam-se todos.

Graficamente, o mais simpático dos lançamentos é, não por acaso, o infantil “A estória do Sol e do rinoceronte”, ilustrado pela colombiana Catalina Vásquez. Ao longo de sua já extensa obra infantojuvenil, Ondjaki sempre apostou em espalhar mensagens que vão repercutir no futuro, e não é diferente nessa nova história. Ao tratar de um bicho forte e esquisitão, que se acha triste e deslocado no mundo, o angolano mostra como tudo é uma questão de ótica, sublinhando a importância da gentileza e da paciência. Com sensibilidade, o Sol é o personagem que não doura a moral da história, deixando claro que a vida tem, sim, suas tristezas, mas os momentos contentes também haverão de aparecer. Ou seja, nada de enganar a criançada com mentiras bonitinhas garantindo que o mundo é só alegria. Essa mensagem não deixa de ir na contramão da maioria dos livros para crianças.

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O pacote Ondjaki contém ainda a reedição de “Os da minha rua” (2007), que revisita a infância e a juventude do autor, reverenciando também ícones como Graciliano Ramos e até as telenovelas brasileiras — tão presentes nos países de língua portuguesa. Por último, não menos importante, volta às livrarias “Há prendisajens com o xão (o segredo húmido da lesma & outras descoisas)”, de 2011.

Qualquer dos títulos dessa fornada reforça por que Ondjaki, que acabou de completar 44 anos, logo entrou para a nobre linhagem de escritores de língua portuguesa, mas não brasileiros, que despontaram por aqui nas últimas três décadas.

Nelson Vasconcelos é jornalista