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Autora portuguesa Alexandra Lucas Coelho mostra o Rio da euforia ao caos

No romance 'Deus-dará', com lançamento nesta quinta, ex-correspondente do 'Público' mergulha na cidade que parecia pronta para dar um novo passo (em falso)
Alexandra Lucas Coelho em 2012 na casa do Cosme Velho onde viveu e começou a escrever o livro "Deus-dará" Foto: Paula Giolito / Agência O Globo
Alexandra Lucas Coelho em 2012 na casa do Cosme Velho onde viveu e começou a escrever o livro "Deus-dará" Foto: Paula Giolito / Agência O Globo

RIO - No início desta década, o Rio estava eufórico. Tendo Copa e Olimpíada no horizonte, investimentos estrangeiros e o aparente alento das UPPs, a cidade parecia pronta para dar um novo passo — em falso, como testemunhou a portuguesa Alexandra Lucas Coelho, correspondente do jornal “O Público” na cidade entre 2010 e 2014 .

Sua experiência inspirou o romance “Deus-dará”. Lançado em Portugal em 2016, ele ganha agora uma edição brasileira pela Bazar do Tempo, que está promovendo um tour com a escritora pelo país. O lançamento carioca é nesta quinta (16), na Travessa de Botafogo, às 19h. A passagem pela cidade inclui também um evento na faculdade de Letras da UFRJ, também na quinta, às 10h; um encontro sexta-feira, 16h, no Instituto Maria e João Aleixo, na Maré; e, no dia 27, 11h, um debate na PUC-RJ.

Autora premiada , Alexandra, 51 anos, já havia escrito sobre o país em “Vai Brasil!” (2013), mas ainda faltava a ficção. “Deus-dará” acompanha sete personagens ao longo de sete dias de três anos diferentes, “entre o gênesis e o apocalipse”. A saga é contada  por um narrador “transatlântico” — que além de usar um vocabulário luso-brasileiro, mergulha na História dos dois países.

Na entrevista a seguir, feita por e-mail, Alexandra fala sobre o novo livro e sua relação com o Brasil e o Rio — que incluiu saudades do Cosme Velho e um desfile com a Mangueira neste ano.

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Autora: Alexandra Lucas Coelho. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: 440. Preço: R$ 65. Lançamento: quinta-feira, 16/5, 19h, na Livraria Travessa de Botafogo — Rua Voluntários da Pátria  97 (3195-2000). Debate com Luiz Eduardo Soares e Mariana Filgueiras (mediadora) e música de Dimitri BR

Como surgiu a ideia do livro?

A ideia veio nos últimos meses de 2012, dando a volta à lagoa, caleidoscópio em que o Rio de Janeiro parece rodar em torno de nós. Eu morava numa ladeira do Cosme Velho, já meio floresta. Muitas vezes descia para pegar o ônibus, atravessava o Rebouças, saltava logo depois do túnel e caminhava em volta da lagoa. Um dia “baixou” a ideia desse romance: ia chamar-se “Deus-dará”, ia ser algo entre génesis e apocalipse, estrutura bíblica de sete dias, com sete protagonistas. Porque a natureza prodigiosa do Rio sempre parece estar brotando: um génesis. Mas, ao mesmo tempo, o apocalipse já estava ali, ao contrário do que pensei nos primeiros tempos na cidade. Cheguei em 2010, então quando a ideia do romance veio, eu já tinha dois anos de Rio de Janeiro/Brasil. E no meio da aparente euforia dos dias pré-olimpíada, já era o apocalipse que eu via. Estava na vida de milhões, pele escura, horas nos ônibus e nos trens, furados por bala perdida, pelo fogo real de polícia, milícia, traficante. Gente violentada, abandonada, fora do Estado. Ao “Deus-dará”.

"Deus dará" reúne vários registros. Foi uma opção desde o início ou algo que acabou se revelando ao longo do livro?

“Deus-dará” é um romance. Ou seja, construção literária, máquina: estrutura, personagens, narrador, modos narrativos e não narrativos, vários tons de linguagem, experiências com a página, com a tipografia, com a mancha do texto. O romance, desde as bases, desde o “Quixote”, sempre foi mestiço, um laboratório. Sempre houve romances com digressões históricas, ensaísticas, experiências, de Sterne a Melville, a Tolstoi. Isso é o próprio DNA do romance. Vejo o romance não como um género, mas como um transgénero. Um território onde pode confluir tudo. E por isso me interessa. Não quero reproduzir fórmulas. Cada romance, idealmente, inventa a sua própria forma. Publiquei até agora quatro e são todos diferentes. No caso de “Deus-dará” fez sentido ter também uma bibliografia, porque houve muita pesquisa. Inicialmente não tinha pensado que seria assim, mas numa fase adiantada, quando o romance explodiu, depois dos protestos de 2013, passei meses só a estudar, deste o antes de 1500 a antropologia contemporânea.

O Rio do romance já parece distante e distinto do Rio de 2019. Mesmo à distância, como avalia essa mudança de ânimo na cidade?

O Rio deste romance são muitos. O livro faz um arco entre génesis e apocalipse, entre euforia e caos. São sete dias seguidos na semana, porque se passa entre uma quarta e uma terça (de Carnaval), mas ao longo de três anos, o que é decisivo. Então, a primeira parte acontece no tempo eufórico, mas já antecipando o apocalipse. A segunda parte é a explosão de 2013, um buraco negro, um vórtice, algo que suga tudo, e que até hoje estamos a tentar decifrar. Está bem no meio do livro. E a última parte é o apocalipse mesmo. Aí o narrador, espécie de xamã, conectando vivos e mortos, no seu terreiro, esse narrador transatântico que conhece passado e futuro, leva o “flash forward” até depois das Olimpíadas e do golpe que afastou Dilma.

Mas desde o título, desde o subtítulo ["Sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro, ou o apocalipse segundo Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel & Noé"] , a ideia de apocalipse está presente, como uma antecâmara deste 2019. Não era possível traçar este arco para o caos sem a euforia inicial. Aconteceu naturalmente assim.

O livro é cheio de tangentes teóricas e mergulhos históricos, é como se o narrador tivessem um afã de explicar o Brasil e conhecer sua História. Deu-se assim com a autora?

Inicialmente, ia ser um retrato do Rio. As digressões históricas que aparecem aí têm a ver com a ideia do génesis, de ir criando uma cidade aos olhos do próprio leitor. Depois de 2013, quando explodi o próprio livro, percebi que além dessa linha mais à superfície, do Rio agora, teria de escavar, furar, na vertical, rumo aos fantasmas que estão debaixo dos pés no Rio e no Brasil, que também geram a violência de hoje. E esses fantasmas entroncam na minha própria história: no apocalipse de 1500, em que tantos povos indígenas foram exterminados a partir da chegada dos portugueses; no facto de o império português ter tirado de África seis milhões de escravizados, e com quatro milhões ter colonizado o Brasil. Então, este romance tornou-se aquilo que precisava de ser, que eu precisei de fazer.

Passei muitos anos a cobrir regiões colonizadas por outros, ingleses, franceses, otomanos, espanhóis. Uma das razões por que quis vir morar no Rio como correspondente foi ter a experiência do maior território colonizado mais tempo por Portugal. Incluindo a experiência de ser atravessada por outros modos da língua. Cheguei assim ao Brasil não directamente vinda de Portugal, mas depois de muitas voltas, o que fez muita diferença.

Então, este não é o livro de uma brasileira, claro, mas também não é o livro só de uma portuguesa, de alguém que nunca tivesse morado noutras partes, ou sido transformada por elas. É o livro que precisei de escrever, com tudo o que me foi moldando. Uma espécie de antropofagia transatlântica.

Além de recorrer aos livros de História, você também buscou capturar a época em que estava escrevendo?

Há uma criação de um presente, de uma época, e uma escavação dos alicerces não só do presente como do futuro. Por isso 2019 de certo modo já está lá. O narrador fala de si mesmo como o arqueiro que liga os tempos. Arqueiro, xamã. Algo assim.

Sobre a linguagem: logo no começo você fala de um "narrador transatlântico" e, de fato, acaba se apropriando de uma cadência, uma ortografia e um vocabulário brasileiros. Nesse sentido, como foi a repercussão do livro em Portugal?

Por ser esse palimpsesto, esse híbrido, o livro teria sempre zonas cegas, margens perdidas, tanto para brasileiros como para portugueses. Para já não falar de leitores fora desta língua. A sua própria natureza tenderia a mantê-lo entre nós. Paquiderme no meio das nossas porcelanas.

Comparando com livros anteriores meus, “Deus-dará” não teve tanto eco nos meios tradicionais em Portugal. Alguns nem o resenharam. Ninguém das Letras me chamou para falar dele. Tenho-o debatido muito mais fora de Portugal. Os textos com um mergulho maior saíram bem depois da publicação. Mas há uma força paralela que vem de certos leitores, tem vindo sempre. Um caminho que o levou para outras regiões, originou debates.

Além de Machado de Assis, que até faz parte da trama, que outras influências brasileiras formaram "Deus-dará"?

Machado foi o meu primeiro vizinho-fantasma, porque eu morava no Cosme Velho. O livro vai-se construindo em redor do Cosme Velho, até recuar a antes de 1500, até subir às estrelas. Mas há dezenas e dezenas de livros, canções, filmes, tudo o que também é fundador da minha relação com o Brasil, e a foi moldando. De Davi Kopenawa e cosmogonias indígenas a Caetano Veloso, o artista que mais admiro no planeta. De Cecília Meireles (outra vizinha do Cosme Velho) a Glauber e Ava Rocha. De Criolo, Racionais ou B Negão a Letuce, antes de ser Letrux, ou Dimitri BR, querido amigo que tocará no lançamento na Travessa de Botafogo.

Ainda sobre a forma: em "Deus dará" você usa imagens de arquivo no meio do texto, brinca os itálicos e negritos, diagramação, tipos de letras. Qual a intenção desses jogos gráficos, como você vê a interação deles com a narrativa?

Tal como o uso de cerca de cem imagens, não foi plano de origem. Foi surgindo, pedido pelo texto. O livro foi gerando as suas necessidades. Como dizer, mostrar, dar a ouvir. Como dar vida aquilo que havia para dizer. Como tirar todas as possibilidades daquilo que o leitor vai ter na mão, um livro em papel.

Este ano você desfilou na Mangueira, que trazia um enredo que tem vários paralelos com "Deus-dará". Pode comentar sobre essa experiência?

Morar no Brasil foi comer o Brasil, e ser comida por ele o mais possível. Desfilei em dois carnavais pela Império Serrano, experiência fundamental. Vir de propósito desfilar na Mangueira em 2019 foi o culminar, espécie de ritual de fecho de “Deus-dará”, ao mesmo tempo que o enredo da verde e rosa tinha uma ligação com todo o livro, indígenas, negros, até Marielle Franco, que se tornou o maior símbolo de um Brasil: negra, da favela, lésbica, lutadora ocupando o sistema político para o mudar. E a Noé do livro pode ser vista como alguém dessa geração.

Que Rio você espera reencontrar e que Brasil você já reencontrou?

Estou muito curiosa para saber das leituras aqui. Mas, se a identidade está em movimento, como acredito, isso inclui os livros. Também eles vão sendo mudados, no espaço e no tempo, Então, a expectativa é como esse romance apocalíptico será lido aqui e agora, quando o Brasil vive o maior desafio da sua democracia.

Comecei esta digressão pelo Brasil dia 2 de Maio e vou terminá-la a 27. Quando a costurei, com a minha editora da Bazar do Tempo, Ana Cecilia Impellizieri Martins, era fundamental um foco nas universidades públicas, nas livrarias, mas também no interior, nas periferias, na terra indígena. Dizer onde estou e com quem estou, neste momento tremendo da vida do Brasil, que se tornou um pouco meu também. Entretanto aconteceram os ataques directos às universidades e institutos federais, às bolsas de pesquisa, essa blitz geral à educação, cultura e ciência no Brasil. Já estivemos na Unicamp, nas grandes universidades públicas de Brasília e Salvador, também na Flipoços, agora vamos estar na UFRJ, na Maré, além do lançamento na Travessa de Botafogo, e ainda PUC no dia 27. Pelo meio ainda iremos a Minas, e irei até à aldeia indígena de Ailton Krenak, para depois viajarmos juntos até à Serra do Cipó, onde faremos uma actividade. Se os indígenas resistem ao apocalipse desde 1500, o Brasil é certamente muito maior do que os ratos que querem acabar com ele, mesmo que agora estejam sentados no poder. Estamos cá para lutar por isso, pelo nosso futuro juntos.

Escrever, de resto, é uma luta de libertação.