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Autores de romances policiais contam como 'concorrem' com o Brasil real

‘Ou você cria um Rio ou um Brasil imaginário ou leva o crime para o lado do exagero’, conta Raphael Montes
Autores de romances policiais contam como 'concorrem' com o cotidiano violento no Brasil Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Autores de romances policiais contam como 'concorrem' com o cotidiano violento no Brasil Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

RIO — Um dos mestres do romance noir norte-americano ao lado de Raymond Chandler, Dashiell Hammett decidiu parar de escrever no auge do sucesso porque seus personagens — mafiosos e trambiqueiros do submundo dos anos da lei seca — não existiam mais. No Brasil, o desafio dos escritores é encarar uma realidade que, se não é mais absurda do que a mais fantástica ficção, é de uma barbárie assombrosa.

“A literatura pode trazer de volta a percepção de que um crime como o homicídio é um ato extremo que muda em definitivo as pessoas, e aí temos que voltar à pedra fundamental do que chamamos de 'romance policial psicológico': "Crime e castigo", de Dostoiévski”

Carlos Marcelo
Jornalista e escritor

Para o jornalista e escritor Carlos Marcelo, autor do ensaio "Crimes sem fronteiras: deslocamentos no romance policial" (2016), a principal questão para a literatura de crime contemporânea no Brasil é justamente a banalização da violência :

— Ela está no nosso dia a dia, em imagens reproduzidas ad nauseam por TV ou redes sociais, mas infelizmente também está na nossa vivência. Acho que a literatura pode trazer de volta a percepção de que um crime como o homicídio é um ato extremo que muda em definitivo as pessoas, e aí temos que voltar à pedra fundamental do que chamamos de "romance policial psicológico": "Crime e castigo", de Dostoiévski. Tentar reproduzir na literatura a banalidade da violência social é infrutífero e ingrato. Será difícil superar o Rubem Fonseca de "Feliz ano novo" e do assombroso "O cobrador".

O crítico Júlio Pimentel Pinto, professor do Departamento de História da USP e autor do ensaio que abre a antologia "Acerto de contas: Treze histórias de crime & nova literatura latino-americana contemporânea" (Companhia das Letras), acredita que a ficção é sensível aos impasses, às angústias e às tensões do seu tempo. Isso ainda é mais forte no caso do romance policial, e ele dá o exemplo da literatura noir americana, surgida no período entreguerras e de lei seca nos Estados Unidos.

— Talvez hoje a ficção policial seja o gênero (ou subgênero) mais sensível às dificuldades e aos impasses com que o mundo se defronta. Não à toa, desde os anos 1990, é raro encontrar uma história policial clássica, poeana — diz, em referência ao americano Edgar Allan Poe. — O crime não ocorre mais com o candelabro. Hoje se trata de crime organizado, narcotráfico, conluio entre Estados, conglomerados industriais. Crimes cuja solução dificilmente acontece e a punição é quase impossível.

VIOLÊNCIA HIPERBÓLICA

Autor de romances policiais como "Suicidas" e "Dias perfeitos", Raphael Montes conta que, para enfrentar a barbárie do mundo real, aposta numa violência hiperbólica, quase cômica, já que competir seria inútil e mesmo impossível:

“A banalização dificulta o trabalho do ficcionista. Ou você cria um Rio ou um Brasil imaginário ou leva o crime para o lado do exagero, para o cômico, o surreal”

Raphael Montes
Escritor

— A banalização dificulta o trabalho do ficcionista. Ou você cria um Rio ou um Brasil imaginário ou leva o crime para o lado do exagero, para o cômico, o surreal. Meus livros têm uma verossimilhança interna, mas estão longe de serem livros realistas. Tento ser ainda mais violento do que a realidade, para fazer rir desse absurdo todo.

Autor de "Renato Russo - O filho da revolução" (Planeta), Carlos Marcelo elegeu o arquipélago de Fernando de Noronha para ambientar seu primeiro romance, "Presos no paraíso" (Tusquets). No livro, Tobias é um professor que, em situação financeira delicada, aceita preparar um roteiro histórico, e não tanto praiano, do lugar. Na noite do seu voo de volta, um problema no avião interdita o aeroporto da ilha, e ele se vê preso no paraíso, como diz o título.

Pouco depois, um coronel reformado e um médico são encontrados mortos na casa do militar na ilha. Aparentemente, foi uma briga, mas as andanças de Tobias pelo passado pouco lembrado de Noronha — com cárceres que abrigaram presos políticos nas duas ditaduras brasileiras do século XX —, vão colocá-lo no meio de uma trama de obscuros e pitorescos personagens. Carlos Marcelo é fascinado pelo subgênero do "crime do quarto fechado" e adaptou a ideia para o Brasil.

— Para isso, seria necessário ambientar a narrativa num lugar isolado, aonde só se chega de avião ou, muito mais esparsamente, de barco. Assim, se ocorre um problema no aeroporto, não há como escapar rapidamente: vítima, investigador e criminoso estão no mesmo território — diz o escritor. — Queria um lugar com história própria, com cicatrizes. "Noronha é como se Alcatraz tivesse se tornado o Havaí", define um dos personagens.

'ROMANCE 100% BRASILEIRO'

Carlos Marcelo afirma que se propôs, desde o início, a fazer um romance 100% brasileiro. Estão lá o delegado boa-praça, o ator de novela, a moça trabalhadora que cuida da pousada. O escritor vê "Presos no paraíso" como o encontro de influências brasileiras e estrangeiras, ou, nas palavras dos noronhenses, entre "o mar de dentro e o de fora".

— Como se, no banho de mar no Sueste, com tubarões passando, fosse possível flagrar uma conversa de Agatha Christie e Fernando Sabino sobre "A faca de dois gumes" e "...E não sobrou nenhum", dois dos meus livros favoritos — diz o autor.

Já em "Um romance perigoso", Flávio Carneiro traz de volta dois detetives bem brasileiros, que protagonizaram "O campeonato" e "O livro roubado" (lançados pela Rocco). André, o narrador, montou escritório em cima do sebo de seu parceiro, Gordo, no Centro do Rio. Juntos, caminham pela Lapa, atacam joelhos de porco e chopes no Bar Brasil e tomam café em pés-sujos enquanto investigam um serial killer de autores de autoajuda.

“Tento ser ainda mais violento, para fazer rir desse absurdo todo”

Raphael Montes
Escritor e roteirista, autor de romances como 'Suicidas' e 'Dias perfeitos'

— Acredito que o importante, em ficção, não é o que, mas como contar. O que me dá mais trabalho é sempre a criação do narrador. Claro, penso com cuidado em personagens, cenários, enredo, mas nada disso funciona se você não tem um bom narrador. Nos meus romances policiais, o narrador é o André, e acho que ele tem um jeito brasileiro de contar histórias, com humor e imaginação.

No livro, Gordo comenta com André as razões que levaram Hammett a parar de escrever. O escritor americano disse que "só sabia escrever sobre trambiqueiros de verdade, gente do submundo, do tempo em que ainda existiam contrabandistas de bebida.

Esse tempo tinha acabado, os trambiqueiros agora eram homens elegantes, frequentavam country clubs. Ele não tinha história para contar sobre os novos tempos", diz Gordo. Para Carneiro, porém, a realidade não é problema.

— Minha preocupação é sempre com a literatura. Escrevo livros sobre livros, ou livros entre livros — afirma. — Não por acaso optei por uma dupla de detetives que adora ler. O Gordo, inclusive, é dono de sebo, e a solução dos mistérios está sempre em algum livro. Meu espaço é o espaço da cidade, claro, mas é sobretudo o da biblioteca.