Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Biografia de Mário de Andrade traz poema perdido do 'papa do modernismo' e faz correções históricas

Obra de Jason Tércio reforça importância do legado do escritor para cultura brasileira
Mário de Andrade manteve independência intelectual mesmo em tempos polarizados, diz autor de nova biografia Foto: IED : Instituto de Estudos Brasileiros
Mário de Andrade manteve independência intelectual mesmo em tempos polarizados, diz autor de nova biografia Foto: IED : Instituto de Estudos Brasileiros

RIO — Um poema perdido de Mário de Andrade (1893-1945); textos literários de seu pai de que nem mesmo o “papa do modernismo” tinha notícia, ou cartas de um relacionamento que ele manteve com um rapaz ainda em sua juventude. Estas são apenas algumas das descobertas do jornalista Jason Tércio em sua biografia de um dos personagens centrais da cultura brasileira, fruto de mais de duas décadas de pesquisa.

“Em busca da alma brasileira — biografia de Mário de Andrade” (Estação Brasil, Sextante) mergulha na vida do homem que era “trezentos, trezentos-e-cinquenta”, como o próprio se definiu em um poema. Agora, para além da biografia lançada por Eduardo Jardim em 2015, “Eu sou trezentos — Mário de Andrade: vida e obra”, a figura de Mário é apresentada num novo livro feito com rigorosa documentação historiográfica.

No processo de garimpagem, Tércio encontrou preciosidades. Uma delas é o poema “preta bem pretinha”, publicado no dia 4 de outubro de 1929 na obscura revista “o q l”. Segundo o pesquisador, ele não consta em nenhuma edição das poesias completas do autor, sendo portanto praticamente inédito:

“no tempo das fazendas

a preta, bem pretinha

era o ai! jesus do sinhô...

a senhora não gostava

muito...

mas a moleca sabia viver

tanto que um dia

ela,

que entrou como escrava,

saiu como patroa...”

— Esse poema só saiu nessa revista, que publicou uma página chamada “Antropofagia: órgão dos antropófagos de São Paulo” durante um período — afirma Tércio sobre a seção que teve colaboradores modernistas como Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. — Essa página foi portanto a terceira dentição ( como Oswald chamava as fases do movimento ), o que era desconhecido pela historiografia do modernismo.

Intimidade revelada

Além de múltiplo em suas contribuições para o desenvolvimento de um projeto de cultura para o país , o Mário de Andrade que Tércio revela é vincado de ambivalências e contradições. Para entender esse perfil, o biógrafo mergulhou no histórico familiar, onde descobriu, por exemplo, a verve poética de seu pai.

— Mário nunca mencionou isso em suas cartas. Ele herdou a veia literária do próprio pai.

Ainda jogando luz sobre a vida íntima do autor, Tércio desfaz qualquer dúvida em torno da suposta homossexualidade de Mário (que na verdade seria bissexual). O jornalista descobriu uma troca de cartas inédita com um rapaz identificado no livro apenas como H., com quem o escritor teve um caso amoroso. O livro mostra que mesmo participando de uma congregação católica, Mário não se furtava de farrear em clubes com H.

Nova biografia releva detalhes da intimidade do escritor Foto: Divulgação
Nova biografia releva detalhes da intimidade do escritor Foto: Divulgação

O jornalista contesta ainda uma série de versões dominantes da historiografia do modernismo, como o registro de que Mário conheceu o parceiro e posterior desafeto Oswald de Andrade em 1917. Segundo Tércio, desde 1912, Oswald, que era amigo de infância do irmão de Mário, já frequentava o Conservatório onde Mário estudava.

Sobre a conhecida fragilidade física do modernista, o autor afirma ser causada por uma pleurodinia, doença causada por vírus, mas não identificada na época. Ela seria a origem dos sintomas que se manifestavam em Mário de tempos em tempos, como dores no peito e de cabeça (muito relatadas nas cartas para Carlos Drummond de Andrade ).

Além de detalhar do início ao fim a vida de Mário, o livro é um importante registro do contexto histórico da época, sobretudo da Semana de 22, cuja gênese é esmiuçada em um capítulo. Além disso, as pesquisas folclóricas , a criação do Departamento de Cultura de São Paulo e o tumultuado período no Rio também estão documentados na obra.

Biografia de Jason Tércio é fruto de mais de 20 anos de pesquisas Foto: Divulgação
Biografia de Jason Tércio é fruto de mais de 20 anos de pesquisas Foto: Divulgação

— Esse espírito de abertura mental do Mário é o principal aspecto que marca sua personalidade. Um cara que não se alinhou a grupos, mesmo num período muito polarizado por integralistas, verde-amarelos, a antropofagia. Ele mantinha uma independência intelectual — diz.

Tércio vê o legado do autor de “Amar, verbo intransitivo” com mais otimismo que seus pares. Em contraponto a Eduardo Jardim — defensor da tese de que Mário viu seu projeto artístico e de nação ser derrotado no fim da vida —, o biógrafo acredita que a missão do modernista foi cumprida.

— O folclore hoje é mais conhecido e valorizado do que quando o Brasil era um país basicamente rural. Na medida em que a cultura de massa se expandiu, ele teve uma assimilação maior na vida urbana, como mostrou o tropicalismo, por exemplo — opina Tércio. — Acho que o fracasso do Mário seria o fracasso do Brasil.